“In Extremis” (54) - O ressurgir do COM

Por Cecílio Elias Netto | 16/06/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Haverá alguém de pensar sejam sonhos, desejos, esperança e até mesmo aspiração utópica do escrevinhador caipira. Se assim for, não importa. Não há vida sem desejos, sem aspirações, sem sonhos de olhos abertos. Se houvesse, pouco haveria de diferente entre viver e vegetar. “Nem só de pão vive o homem…” – as palavras ainda soam através dos séculos. E seria oportuno escancararmos os corações para entender que o deus das religiões é criativo e não destrutivo. Que o Criador anuncia o bem e o bom, não castigos eternos e amargores sem fim. Eis a maravilha: a vida como dom, não castigo.

O ser humano vive, sim, de utopias. Assim não fosse, nem mesmo a ciência existiria. A célebre e imortal visão de Thomas Merton, em criando a Utopia – “o lugar que não existe” – não foi, apenas, sonho dele. Precisaria ser entendida como uma aspiração humana, aquela nostalgia infindável de nossas origens milagrosas. Por milênios, acreditamos ser impossível chegar à Lua. Mas, nela, já pisamos e sei lá o que haverá de lhe acontecer. A Utopia não é, pois, o irrealizável, mas aquilo que ainda não se alcançou. Cada geração é convidada a tornar real o desejo de reencontrar o Paraíso Perdido. Até aqui, temos repetido apenas a arrogância da alegoria criadora de Eva e Adão.

Repito-me: não tenho a mínima esperança de ver um Brasil adulto, digno de si mesmo, de sua vocação para a grandeza. Não o verei. Pois esperança demanda tempo e tempo é o que começa a faltar-me. Mas a vocação brasileira para um novo humanismo tornar-se-á real. Mesmo que demore mais algumas décadas. Está escrito: esta é a terra de “onde escorrerá o leite e o mel”. E depende apenas da gente brasileira, essa que está por vir, que fatalmente virá.

Não importa, pois, digam seja sonho ou utopia do escriba caipira. A minha verdade – e cada um tem a sua – está na convicção de o vírus assassino trazer uma outra e nova maneira de ser, bastando haja-nos humildade. A Vida emite sinais. E, mundo afora, pensadores, estudiosos, cientistas já o compreenderam. A grande revolução já acontece de baixo para cima. E chegou com ímpeto, com a gana das chamadas minorias fazendo desabar estruturas envelhecidas. Está acontecendo.

Ora, se é pouco o meu tempo de estar por aqui, garanto continuar existindo em algum outro espaço. Ou num espaço nenhum. E continuarei escrevendo, missão minha, dever meu. E, diante das ações e gritos revolucionários dessa gente solidária, iniciei o rascunho do que haverei de contar em algum lugar do infinito. Vejo o ressurgir do COM, esse prefixo gerador de milagres.

De nossa gente, então, escreverei que eles viram a queda de muros, de cercas da tanta separação. Que, perplexos, olharam-se uns para os outros. E entenderam: sobreviveram por terem-se enxergado realmente como são e não como inventaram que fossem. Podia-se, portanto, buscar o renascimento.

Revelara-se o sagrado poder do prefixo COM. Pois, na tragédia, a dor não estivera apenas COM um ou COM outro, COMigo ou CONtigo. Ela estivera CONosco. Descobrimos o COMpanheiro, o “cum panis”. COMpartimos, COMpartilhamos o pão de cada dia, pão da vida. Um vírus despertou-nos: COMungar, antes de CONsumir.

Sobrevivemos. Fomos CONsagrados, CONsagramo-nos, CONfortamo-nos uns aos outros, CONciliamo-nos, CONfraternizamo-nos na dor, COMpadecemo-nos mutuamente, houve COMiseração, COMovemo-nos com o sofrimento universal, COMunicamo-nos solidariamente, COMpungimo-nos por nossas falhas. Ficamos preparados para re-COMeçar.

E, apenas, amamo-nos uns aos outros.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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