O Menino de Sua Mãe

Por David Chagas | 01/06/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Nos 70, em tardes azuis de maio, no quintal de sua casa, declamava como poucos Fernando Pessoa. O Menino de Sua Mãe. Bom ator que sempre foi, chegava à perfeição. E proclamava: “o menino sou eu!” Ao lembrar-me disso, colho o bom da vida na maduríssima idade. Ele, Carlos Colabone, e amigos, em experiências de música, de poesia, de teatro. E o espírito do professor João Batista Leme, nome da escola onde estudavam todos e eu, jovem professor, ajudou-nos a enganar o escuro da noite ditatorial com a luz que, brotando da excelente escola que frequentávamos, nos alumiava.

Sempre que me dizem ter sido bom professor, respondo: covardia não ser! Comecei dando as mãos à Cida Bilac e à Zuza Pimentel. Orientação de mais valia. No curso superior, a prática pedagógica vinda delas deu-me base para carreira escolhida. Mais tarde, Antonio Cândido, Joaquim Brasil e Arnoni Prado, deixaram-me outra herança de igual qualidade.

Apesar de lembranças como esta que valem a vida, envelhecer não me enche de prazer e orgulho. Respeito a fase, ocaso distinto ao do sol, sem cor e brilho, e agradeço ter chegado até aqui, com os meus, quando tantos já se despediram, alguns sem aviso prévio, desdenhosos do abraço final. Doído demais. Este, o evento que me toca fundo.

Ao fim da adolescência, experimentei, ao lado de minhas irmãs, a difícil separação da mãe. Se lhes conto, sobretudo em comparação ao tempo somado, também ela, na sua triste cerimônia de adeus, muito nova.

Nesta época, não supunha participar de cerimônias fúnebres, tão seguidamente. A idade cobra. Despedir-me de gente querida, alguns poucos, avançados em anos, outros tantos, a grande maioria, contemporâneos meus e, outros, filhos deste ou daquele casal amigo. Para quem, como eu, tem em Deus força e esperança, encontra nisso ponto de vista bom porque os sabe livres do mal do mundo sem maiores sofrimentos. Por outro lado, despertar como de um sonhar que é morto? Dizer o quê a quem vê perecer “a messe de um dourado estio”? A dor pode até não nos pertencer, mas fere e nos obriga a viver luto que me abraça.

Partir também faz parte da coragem que viver exige. Desde o cair da tarde de terça-feira, abateu-me, e a muitos de nós, tristeza grande. Morreu em São Paulo um dos mais criativos filhos de Rio Claro, dono de vida dedicada à cultura em todas as suas expressões.

No teatro, Colabone encontrou, mais que em outras manifestações, o ponto alto de sua incrível capacidade de recriar o mundo. Como cenógrafo, ganhou prêmios e fez com que o texto, no abrir das cortinas, decifrasse parte do conteúdo a ser encenado. Trago na melhor lembrança a premiadíssima cenografia de Vestido de Noiva de Nélson Rodrigues, que lhe garantiu o Molière 1994, uma das honrarias concedidas a trabalhadores do Teatro.

Brilhou como figurinista, arte-educador e ator. No início dos 80, assinou comigo, para o Teatro Experimental do CLQ, a produção de Romanceiro da Inconfidência, figurinos e direção dele, que fez de Raul Porrelli, aluno brilhante, ser humano exemplar, aos 16 anos, despontar como protagonista.

Ainda para o mesmo grupo, desenhou figurinos e cenário, para o musical Saudosa Maloca, criado por mim em roteiro preparado com músicas de Adoniran Barbosa. Eduardo João, diretor do colégio à época, esteve comigo no Bairro boêmio do Bexiga em visita ao autor. A Escola que nos dava nome talvez se tenha esquecido de uma de suas mais notáveis performances pedagógicas. Os alunos, não! É o que importa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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