E daí?

Por David Chagas | 03/05/2020 | Tempo de leitura: 2 min

Messias, este, não faz milagres. Nunca escondeu a que vinha. Nisso, não enganou ninguém. Trazia consigo histórico de estripulias no Congresso e na Câmara Federal que devem ter enrubescido sua velha mãe. Mesmo assim, a maioria do povo brasileiro quis fazê-lo chefe da nação na expectativa do novo. Por certo supunham que caminhasse sobre as águas, fizesse ver aos cegos, desse movimento a deficientes, transformasse água em vinho e, jejuando, na praia de Inema, na Base Naval de Aratu, multiplicasse peixes. Que nada! Messias, ao lado do zero um, zero dois, zero três e zero quatro, espanta o mundo com sua logomaquia. Bom reprodutor, deixou marcas em cada um dos garotos, que não negam a origem na fala nem na ação, empurrando, todos os cinco, para longe, o conceito de afável, caloroso, cordial dos brasileiros.

Messias, por certo, não leu Hegel nem sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Engano-me ou parece assumir, na leitura de suas falas e de seus gestos, com relativa exatidão, o que dita o filósofo: “É suspeito aferrar-se ao sentimento e ao coração contra a racionalidade pensada, contra o direito, o dever e a lei. Suspeito porque no sentimento o que há de adicional é somente a subjetividade particular, a futilidade e o arbítrio. Só egoístas, maus e mal intencionados prendem-se ao particular. Os que se sentem injustiçados por não terem os seus caprichos atendidos são a corporificação da injustiça”.

Quando, em passado recente, segundo o ex-presidente da Funai, revelou aversão ao povo indígena, senhor da terra. Causou estranheza porque se declara cristão e, mais que isso, terrivelmente evangélico. Quer, até mesmo, acercar-se de personagens que sejam assim, como diz, terrivelmente evangélicos. Que pena! Há evangélicos notáveis, seguidores fiéis da Palavra, nada fastidiosos, nada terríveis, verdadeiramente cristãos.

Ao defender, em plena pandemia, posições opostas a de todo o mundo civilizado e às orientações da ciência, o capitão parece prender-se ao particular, acreditando somente nele, em seu histórico atlético, insensível a doenças, em sua valentia, na macheza de sua verborragia, no desdém com que se refere a infectados e mortos pelo Covid19 ou jogando a todos para a situação de risco, idosos na sua maioria, com desrespeito e desdenhosa referência à importância da vida.

Trago comigo – e com saudade – herança de Darcy Ribeiro, em especial seu discurso na Academia de Letras. Reproduzo. Tomara, não me traia a memória. Sempre que jornalistas me põem em contato com a verborrágica fala palaciana me assalta sua afirmação daquela noite memorável: “A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. (…) Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos.”

Dirá, por certo: E daí?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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