Para isso fomos feitos?

Por David Chagas | 27/04/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Quanto agradeço ter recebido afeto bastante no despontar da vida, aprendendo, com isso, a distribuir iguais sentimentos. Tem sido difícil neste correr de século, conviver em meio à intolerância, ao preconceito, a tanta indiferença, se o aprendido na infância, como lição diária, foi amar e receber amor em troca. Desde então, “amigo era só isto: a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. … Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.

Na meninice, juntar conversas indicava conviver com harmonia, ampliando relacionamentos. Não se dava muita conta do coeficiente da adversidade. A relação social conhecida era entre irmãos e era boa. Demora-se a descobrir que é possível estabelecer relação de escolha que pode ser, também, igualmente benéfica. Digo isto, com segurança absoluta, porque, aqui mesmo onde escrevo, agora, tenho Walterly Accorsi, por exemplo. Estar com ela, pensar nela, me reporta à vida de antes, quando, na infância, tudo era sereno e bom. Em sua casa, seus pais vivos, fins de tarde repetindo versos do poeta fluminense, faziam-me entender que ali, os quatro, ela, eu, seus pais, repetíamos, na recitação, as delícias das tardes fagueiras, “à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais”, vivendo isso.

Quando seus pais se despediram e deixei, definitivamente, a simplicidade da vida rural, onde, com os meus, passei alguns anos num convívio exclusivamente familiar, entre brinquedos, árvores, animais, repensar a descoberta da cidade grande e suas relações me permitiu entender que esta não fora tarefa fácil. Perceber as diferenças reveladas que se impuseram entre a forma de pensar, de agir, fez-me entender onde nasce o isolamento, a solidão, a ansiedade, a angústia, quem e o que tumultuam a existência, sobretudo se houver vivacidade, audácia da inteligência capaz de criticar o modelo social existente, entre quem tente fazer dele ideal.

O comportamento urbano, como um bisturi, pouco a pouco, extirpa a bondade natural da infância e implanta diferentes estímulos, sentimentos e necessidades que, muitas vezes, se originam em ambiente familiar distinto do seu, esfera de vida privada, onde deveria predominar conduta de natureza exemplar.

Agora mesmo, nestes dias de reclusão, de isolamento social, de viagens pelo mundo interior, para muitos, inóspito e vazio, desesperação, medo, violência se evidenciam em muitos daqueles que fazem de si o outro. Por quê? Escolha. “O outro é indispensável à existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que se tem de si mesmo”. Escolhendo-se a si mesmo, ensina Sartre, acabamos por escolher todos os homens. O que vale para si vale para o outro. Enquanto tenta livrar-se do domínio do outro, o outro tenta livrar-se do seu; enquanto procura subjugar o outro, o outro procura subjugá-lo.

Chego a parecer ingênuo tratando de propor o “entendimento entre duas almas quando é possível dizer tudo sem nenhum cansaço”, como ensinou Teresa D’Ávila, e fazer do amigo, amigo, sem saber a razão disso. Acredito ser possível assim. Mesmo com o claro entendimento das propostas existencialistas.

Diante da enorme crise com que deparamos, o que fazer? Terá sido originária da liberdade que supúnhamos nossa sem que nos déssemos conta dela ou não a suportássemos? O que, de fato, nos levou a isso obrigando-nos ao isolamento para que reconhecêssemos o nada que somos.

Abranda saber que muitos, por certo, pensam de modo distinto deste que lhes apresento aqui na esperança de que façamos juntos uma reflexão sobre a amizade insistindo em acreditar nela, sem fazer da relação com o outro algo alienante e mortífero. Estaremos, como ensina Régis Jolivet, permanentemente em perigo?

Por certo, quis ignorar as interferências de uma sociedade como a nossa, maculando por demais coração e alma. Ser amigo é tanto e exige tão pouco. O igual do igual. O prazer de estar próximo. Nada mais que isso. E ser quem se é sem precisar saber o porquê disso. Ou terá sido tudo em vão?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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