Por que sois tão medrosos?

Por David Chagas | 05/04/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Entre para dentro de si mesmo, ouça sua própria voz de modo a observar se a maturidade não lhe fez desperdiçar a vida. Não se culpe por nada. Sinta, apenas, de modo a perceber o que tem valido a pena. Trate a oportunidade do instante como recomeço e descubra o prazer de estar, de ter, de prosseguir, de viver. Desconsidere o ruim. Dê igual trato ao insignificante e procure entender, de uma vez por todas, que, nesta jornada, do nascimento à morte, tudo vale a pena. Até o sofrimento. Não desconsidere nenhum detalhe de alegria e prazer ou de dor. Embebede-se das memórias da infância.

Menino ainda, lembro-me de família rica, cujos filhos, também pequenos, já vinham abarrotados de títulos antes do nome. Por trás da linhagem nobiliárquica, quanto desengano! Aos olhos de uma sociedade como a nossa que pouco ou nada consegue ver além da aparência, cada um deles era depósito de felicidade.

Feliz mesmo era a meninada da minha rua, na sua simplicidade. Só muito mais tarde, com o processo de amadurecimento afetivo e moral ensinando outra forma de ver a vida é que concluí, realmente, a verdade na minha suposição.

Tudo, na infância distante, me revela, hoje, um quê de felicidade. O que me acrescentou a idade adulta, me parece ridículo, meio sem sentido. O conceito de estar feliz, na meninice, com folguedos agradáveis, revelando coisas, propondo descobertas, despertando interesse, guardava verdades que, adulto, soube entender. Vontade de que tudo se repetisse.

Tudo, tudo, como o prazer das caminhadas longas, ao cair da tarde, com meus pais, em busca de nada. Nestes passeios, a cada instante, éramos, eles e os filhos, completamente felizes. Ria-se de tudo porque tudo se nos revelava, a mim e a minhas irmãs, prazer.

No trajeto feito, ao lado dos passeios, a mata. Capim-gordura e capim-de-cheiro faziam moldura instigante. Os primeiros, soltando flores. O outro, sem flor, exalando perfume. Lucernas sobre as folhas fazendo o verde mais verde. Vaga-lumes que as mãozinhas ágeis insistiam em caçar.

Se em casa, quanto se brincava no cair da tarde! Cantigas diversas embalavam estrelas e lua. Jogava-se bola fazendo-na explodir nas costas ou no peito de alguém. Queimado! No lenço atrás, pobre daquele que se deixasse enganar, guardando o lenço por trás de si. A algazarra da infância, a vozearia, as cantorias movendo brincadeiras que sutilmente nos ofereciam autonomia e amadurecimento.

Só bem mais tarde soube entender esta sábia lição daqueles entardeceres emocionantes. A sensação de prazer que a vida tocada com simplicidade e alegria oferecia, o verdadeiro sentido da felicidade.

Na sexta-feira, 27 de março, emocionado, vi Francisco, no Vaticano, caminhar solitário, profundamente comovido, pela Praça de São Pedro. Chovia. De pronto, a memória me trouxe estas lembranças todas que lhes contei antes. Visível sua preocupação e angústia. Na homilia, recobrando sua força interior, proclamou: Por que tanto medo? Repetia Cristo no Evangelho de Marcos chacoalhando seus discípulos amedrontados com a tempestade.

Que falta faz ter deixado, no mais escondido da alma, os sentimentos próprios da infância quando desconhecia o sentido da palavra pandemia e Deus, muito mais que sensação, era presença.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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