Apesar de, um resto de esperança

Por David Chagas | 29/03/2020 | Tempo de leitura: 3 min

As redes sociais estão repletas de informações desnecessárias que parecem não dar espaço para que os convide a assistirem comigo ao fim do verão. Março termina. Seus dias fecham a estação numa beleza única. A pandemia, que tanto mal tem feito à humanidade, turvou, mas não roubou da natureza a oferta de seus bens. A varanda do apartamento ainda me chama a estar à frente admirando tudo, fazendo-me sentir a limpidez do céu que convida a embebedar-me de azul.

Em janeiro, confessei estranhamento ao perceber as quaresmeiras exibindo florada temporã. A explosão do lilás pela cidade, embora aprecie por demais a cor, antecipava e muito o real motivo do florescimento. Me perguntava o porquê de desabrocharem tão cedo, antes mesmo do carnaval passar.

Coincidência ou não, por esta época, as notícias da China, preconizadas mês antes, por médico jovem, agora, morto pela enfermidade, punido pelo atrevimento por fazer notícia de mal que acabaria por maltratar o mundo. Tivesse sido respeitado na sua formação e ouvido na sua astúcia, a desgraça talvez fosse menor. Ele sobreviveria e a visão das quaresmeiras em flor, além do calvário do Cristo, não se somaria à preocupação de agora que nos impôs a todos o isolamento social.

Recluso, com o primeiro raio de sol, trato de aliviar o peso deste afastamento necessário, contemplando os primeiros amanheceres de outono deste ano da graça (ou da desgraça, como dizem alguns) em que todos, por não termos o porte atlético do capitão, andamos preocupados com a gripezinha que nos circunda. Tivéssemos nos dedicado à prática esportiva, entenderíamos o resfriadinho qualquer, de que fala.

Para evitar comoção maior com notícias, tive, na manhã, quando escrevo, vontade de convidá-los a também olhar a cidade, onde quer que estejam. Com sol ou chuva, pouco importa, sintam-na como se fora feita de giz. O branco das paredes das casas e dos muros, predomina, neste recanto meu, dando-me a sensação, aumentada ainda mais pelo silêncio, que todos ainda dormem.

O silêncio é tanto nestes dias. Vez por outra, um carro passa, quase sem alarde. Uma e outra pessoa se atrevem a caminhar pela rua. Na cidade, como sabem, raramente um galo canta para impulsionar a tecedura da manhã. O que mais chama a atenção, antes do horizonte distante em toda sua beleza, com serra e montes fazendo o contorno da cidade, são as árvores, com as últimas chuvas, em toda sua exuberância. Limpo, sem nuvens, o céu espelhado.

Mais que ver, sentir. Ao contar-lhes a visão que tenho e a sensação que isto me dá, algo me cutuca a memória sugerindo um texto de Cecília Meireles. Nele, a poetisa, cuja obra me faz um bem enorme, fala da sua cidade que parecia feita de giz, assim como a minha, agora. Diz coisas que me enchem a alma de sonhos, coisas simples que a fazem completamente feliz. Apesar do prazer momentâneo, não é bem o que me ocorre nestes dias que nos apresentam notícias sombrias. Impossível, apesar da paisagem, sentir-se completamente feliz.

A luz do sol de outono não desfaz preocupação e medo. Pudesse ao menos entender o sentido das cerejeiras, no outro lado do mundo, e o encantamento da estação em nosso hemisfério fazendo disso a razão deste nosso encontro, hoje, deixaria, ao menos, um rastro de esperança entre todos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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