Não nos afastemos muito

Por David Chagas | 22/03/2020 | Tempo de leitura: 3 min

A ordem é essa: isolem-se!

Impõe-se, numa clara intervenção do Estado, determinação que, para muitos, traz desesperação e medo. Para outros, conviver com a própria solidão revela oportunidade única de amadurecimento emocional, crescimento interior. Valhamo-nos disto.

Todos sabemos que conviver com o outro ajuda-nos a traçar nossa própria subjetividade. O que talvez incomode neste momento, é a imposição necessária do isolamento, o distanciar-se do convívio por vezes agradável, a companhia de quem possa trazer, ao longo do dia, a bendição do sol, o cantar dos pássaros, o azul do céu, no sorriso, no olhar, na palavra que bendiz e aquece.

O estranhamento provocado pela ausência, cutucando o mais íntimo de nós mesmos, provocando perceber a saudade, como se, com isto, se decretasse o fim das boas experiências sociais de antes, é que faz o momento difícil de agora, parecer isolamento mortífero.

A modernidade trouxe-nos alguns instrumentos que talvez abrandem este mal-estar. O celular e tudo o que guarda dentro dele, com seus tantos aplicativos, permitem contato imediato e trazem para dentro da casa a presença virtual de quantos desejarmos.

Terá sido esta a razão de vivermos situação inusitada que epidemia surgida no oriente nos revela? Terá sido este mal, motivo para que, esquecidos que andávamos de nós mesmos e dos nossos, nos voltássemos em quarentena determinada, para dentro de nós mesmos olhando demoradamente para os que nos rodeiam em nossa própria casa?

Sempre que o mundo me chacoalha com notícias assim (confesso, em saúde pública, nenhuma como esta), por razões que desconheço recupero na memória o que aprendi em leituras que não desejaria ter feito, mas, por uma e outra razão, me atraíram. Por elas, conheci situações similares enfrentadas em diferentes períodos da história da humanidade, muitas, numa época que deixou tão somente relatos orais, alguns deles ampliados, porque sua pequena divulgação é resultado do que, a seu tempo, se propalou entre os que conheceram o mal.

O que pairava então? A certeza de que as pestes eram resultado dos burgos fétidos da Idade Média e, antes disso, da maldição dos deuses. Terá mudado muito? Ao que se sabe, nem tanto. A imundície, as pragas urbanas advindas do maltrato imposto pelo homem à natureza, que as obrigou a estabelecer uma relação comensal com o homem, deixam como resultado, mais que perguntas sem resposta, doenças de que são hospedeiras, capazes de devastar a espécie humana. Ou não foi esta a origem da peste bubônica, no século XIV, cujo bacilo causador da doença era transmitido pela picada de pulgas de ratos contaminados? E não será alguma delas responsável pela origem da pandemia atual?

Neste século XXI, não é a primeira vez que a história tenta repetir-se na sua forma mais daninha. Não se pode afirmar serem realmente novas as pestes de agora. Serão resquícios de antigas doenças epidêmicas?

Como se sentiria o historiador William H. MCNeill (1917-2016), reconhecido por seu conhecimento de história global, ao saber de enfermidade amplamente disseminada, ele que afirmara, em 1983, que “uma das coisas que nos separam de nossos ancestrais e fazem a experiência contemporânea profundamente diferente da de outras eras é o desaparecimento das epidemias como um fator importante na vida humana”.

Deve ter afirmado isso por desconhecer a afirmação de Jesus, em Mateus: “A cada dia, o seu mal”. Enfrentemos, pois. Isolados, como determina o protocolo, juntos na fé e na esperança.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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