Alguma coisa está fora da ordem

Por David Chagas | 23/02/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Na entrada do Alvorada, o memorável discurso de Juscelino Kubistchek garante, a quem lê e entende, que “deste Planalto Central, desta solidão que, em breve, se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável em seu grande destino”.

Terá, o ilustre fundador de Brasília, tolerante, compreensivo e respeitoso da inteligência, titubeado em sua profecia?

Nos últimos tempos, voz sobranceira ecoa pelos brasis clamando por valores. Que valores busca com tanta ansiedade se há falha em suas falas, em especial dirigindo-se à imprensa, de quem é contumaz antagonista? A proeminente voz parece ignorar que, sem publicações jornalísticas, é impossível prover democracia. Dentro da nova ordem, melhor seria deixá-la dizer o que pensa para os cidadãos, se bons ledores, concluírem por si próprios o falso do verdadeiro, sem interferência alguma.

Escrevo, não por concordar com o poeta ao propalar que algo está fora de ordem, mas para juntar-me a ele ao menos no mesmo ideal de liberdade. Como ele, “também não espero pelo dia em que todos os homens concordem. Apenas sei de diversas harmonias bonitas, sem juízo final”.

O Palácio da Alvorada em seu traçado moderno, e, para onde, por certo, os jornalistas, em especial, quase nunca são chamados, ou alguns poucos escolhidos adentram, tem sido palco de pronunciamentos indevidos. O que fazem as Emas em ambiente tão elegante? Compõem o cenário? Deveriam cumprir melhor sua função, responsáveis que são por evitar proliferação de animais peçonhentos. Sei que à época da reprodução, o macho emite sons que lembram o bramido de grandes mamíferos. Pena não intervirem, com iguais brados, em palavrório desenfreado e desnecessário à convivência civilizada.

Aí, em meio à cultura e à arte vive a mais alta autoridade do país. Entre obras valiosas de artistas consagrados tece seus dias e alimenta seu ego. Bom seria que soubesse lavar da alma a poeira da vida cotidiana. Afinal, é para isso que a arte existe. Não há, nela, nem passado nem futuro. Sua atemporalidade ensina, contribuindo de forma incessante e eterna com a maior de todas as artes, a de bem viver.

Pergunto: estará Sua Excelência observando e absorvendo isso? Assim fosse, não se desgastaria, situação costumeira, dizendo coisas que não lustram seu nome, menos ainda seu cargo, acinzentando, na história, o período que lhe foi outorgado para presidir o país.

Nestas situações, penso em seus próximos: os filhos, já os conhecemos e sabemos que se aproximam de seu patriarca, em especial, no bolodório. Seus assessores, se forem dignos e corajosos, capazes mesmo de pôr-se frente a frente com o chefe, servirão para indicar a melhor fala, a melhor atitude, o melhor exemplo?

Nesta semana, criou-me espanto a forma como Sua Excelência se dirigiu à jornalista Patrícia Campos Mello, atingida de modo tosco em sua honra. Todos sabemos quantos se indignaram. Muitos se levantaram na defesa da jornalista, muitos mais do que a claque que aplaudiu o mandatário.

Penso ter, ainda, resquícios de ingenuidade e singeleza, supondo, por vezes, que os políticos, ao assumirem seus postos, valorizarão virtude, competência, dignidade em seus auxiliares, ao convocá-los para estar a seu lado. Apesar das decepções sofridas ao longo da vida, o resultado desse modo de pensar colhido a cada dia na cidade onde vivo, no estado em que estou e no país que me viu nascer, alimento esperança a cada troca de guarda. Quando virá?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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