Tempo e Memória

Por David Chagas | 09/02/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Por vezes, é preciso apartar-se de tudo. De todos, também. Nenhuma separação definitiva, para completo esquecimento. A do recolhimento necessário. Guardar-se entre paredes impregnadas de segredos, em cômodo acostumado à sua presença, marcado por cheiros, gestos, ideias do seu pensar profundo.

Vez por outra, não sei bem que sucede nas voltas do mundo, mais agora quando parecemos estar todos mergulhados em regiões obscuras de nós mesmos, afastar-se. Com relativa insistência somos chamados, buscando entender a razão do mistério que nos envolve ou das rachaduras entre corpo e alma. Ou não tem sido assim, consigo?

Como disperder do invólucro que nos aprisiona? O que tanto se guardou nesta despensa a que nos levam alguma vez, obrigando-nos a remoer tudo o que ali se encontra? Quem, senão você mesmo, guardou tudo isso para submeter-se a lembranças que bem poderiam perder-se sem provocar jamais novas admoestações?

Enclausurar-se num espaço deste, a que a memória obriga – seria ela mesma? – ou mudanças químicas, as do sofrimento aleatório? Entende, agora, a importância do recolhimento? É preciso, numa geração como a nossa, atender ao que pede o íntimo de si mesmo.

Esta manhã, talvez, combinasse melhor com um texto mais leve, algum conto, uma crônica, um relato singelo com duas ou três boas pitadas de humor. Que nada! Não por acaso recolher-se para dentro de si mesmo à procura para testar seus próprios limites ou destruir tormentas passadas ao reconhecer novas que se avolumam em busca de locais onde possam estar.

Envolto na leitura de O Demônio do Meio-Dia, sigo o que escreve Contardo Calligaris a respeito do mesmo livro, afirmando que na sua companhia é possível estar menos sozinho, além de mexer com seus próprios demônios.

O excelente tratado de Andrew Solomon me foi recomendado por Francisco Bosco, poeta e filósofo, filho do compositor João Bosco, no programa Papo de Segunda. Minha irmã, no entanto, saíra na frente e já tinha o exemplar. Quis lê-lo com urgência tentando entender as tais mutações químicas capazes de sensações diversas a que nos entregamos tantas vezes e só nos mesmos podemos desvendar.

Saltei para dentro de mim de tal forma que nem mesmo relógio a contar horas há quase dois séculos, incomoda. Dele, uma lição preciosa: assombra-me a forma solitária e silenciosa com que soube guardar todos os segredos, em horas acumuladas, ocupado, involuntariamente, com este fazer impiedoso de somar tempo sobre tempo sem dar-se conta dele, mas obrigando a tantos a observar, pensando, assim como eu, neste instante profundo que nem mesmo o relógio refreia.

Quando vejo alguém acercar-se dele acertando ponteiros ou dando-lhe corda para, no silêncio absoluto em que se encontra, prossiga da hora parada, reforço o exercício de coragem necessária para defrontar-me com o mistério da vida regido pela crueldade do tempo. O relógio recupera, num toque, o tempo que passou e prossegue como se a pausa a que se impôs, não existisse.

Quero dar-me conta de uma ou duas badaladas do relógio, nada mais que isso, para estar seguro de que tudo prossegue. A solitude busca esquecer à volta, as notícias propaladas, os equívocos cometidos pelos senhores do mundo e suas perigosas falácias. Só o relógio, em horas paradas, não se dá conta. Quanta coisa neste interregno destratando a memória!

E o poeta canta: “existirmos, a que será que se destina?”

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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