Na Ribeira do Rio

Por David Chagas | 02/02/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Ando pela cidade. Gosto de descobrir o que a cidade oferece. Um cachorro segue, feliz, um morador de rua. Fiel, é leal a seu companheiro andrajoso, como poucos sabem ser. Faz festa, saltita, caminha feliz, ainda que faminto. A criança, no carro, com seu cãozinho de raça, olha e festeja, mesmo que sua mãe reprove o gesto. É feliz ainda. Não conhece o mal que a sociedade dita. Um ônibus passa carregado de gente. Segue. Há passageiros dormindo. Outros, em pé, suportando solavancos que ruas malcuidadas infligem. Trabalhadores limpam calçadas, ruas, avenidas. É o dia a dia da cidade.

Posto-me numa esquina qualquer. Olho. Tudo que se me apresenta não é o que desejaria ver. Quero avistar além de mim, espichando o olhar em direção que me toque a alma. Insisto. Quero divisar além. É como se sentisse necessidade de ver algo já conhecido. Confesso não saber exatamente o que procuro e possa encontrar. O que sei é que me encontro aqui, onde o peixe para.

O rio me atrai. É sempre assim. Ao estar aqui, é ele quem me convida a mirá-lo. Se ao passar por ele houver barcos ocupando o espaço e dividindo com ele o encantamento da paisagem, fico mais alumbrado. Os barcos, a água, os contornos estabelecidos, o desenho do rio fazendo margens guarnecendo a borda faz em mim, no meu espírito, quadro de Renato Wagner perpetuando.

O rio. Como gosto de rio. Não só do Piracicaba tão em mim, mas de um riacho qualquer que me atravesse a mirada entrando sem licença para dentro de mim, como se não tivesse que seguir percurso. Dia ou outro, na noite, em sonho, reaparecerá para que reveja seu movimento, a luz do sol que refletiu em suas águas, suas margens e a mata. Assim é aqui, no Capibaribe, no São Francisco, nos igarapés conhecidos em Manaus. Assim foi em 1984, viajando pelo Amazonas e avistando, ao longe, pontos distantes na imensidão das águas, outros tantos brasileiros que nem eu.

É sempre o mesmo rito a insistir em mensagem que não decifro. Seja como for, um risco na paisagem ou água a mais não poder. Se conta histórias? Muitas. Para quem sabe ouvir. Ali, à sua beirada ou no meio dele, “vou vendo o que o rio faz/ quando o rio não faz nada./ Vejo os rastros que ele traz,/ numa sequência arrastada,/ do que ficou para trás”. Faz festa à natureza. Desfia orações sentidas no chuá, chuá das águas. Chama pássaros, traz abelhas, borboletas para ornar suas beiradas. Celebra o momento. Impõe-se, não importa se extenso, volumoso ou um risco d’água.. É o rio, sempre o rio.

Traça limites, separa extensões de terra corta o espaço, faz contornos. Não avisa senão pelo burburinho roçando pedras a sua chegada. Faz presença. E segue. No instante em que passa, passado e presente se confundem neste trajeto. É? Foi? “Vou vendo e vou meditando/ não bem no rio que passa/ mas só no que estou pensando./ Porque o bem dele é que faça/ eu não ver que vai passando”.

Nunca soube ao certo o nome daquele riacho que corria desenhando, na baixada de onde vivia, os pés do morro, em Graúna. Nunca soube. Minha irmã e eu, pequeninos os dois, na marcante companhia de meu pai, avançávamos morro acima, sem saber ao certo, para onde íamos. Eram tão felizes aqueles passeios.

Morto, meu pai participa desta lembrança boa, entre tantas, de seu tempo conosco, como se fora agora. Na passagem por aquele igarapé, deu-nos as primeiras lições, permitindo entender que o riacho, aquele, fora o limiar da vida na Terra. Muito tempo depois pudemos entender isto.

Desde menino esta tentativa de descobrir as verdades que o rio guarda. Ninguém decifra. Se é vida, porque tanta judiaria com tantos deles? E eu, aqui, tentando achar, no que passam por mim, quantos serão os que ficaram retidos entre concreto e asfalto, sufocados. Por sorte, onde o peixe para, o rio me acolhe. “Vou na ribeira do rio/ que está aqui ou ali,/ e de seu curso me fio,/ porque, se o vi ou não vi, ele passa e eu confio”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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