Kelma Jucá

Passageira de Mim

Por Kelma Jucá, jornalista |
| Tempo de leitura: 3 min
Kelma Jucá
Kelma Jucá

Perdi o meu voo. Dias atrás. E eu não estava atrasada. Do contrário, estava eu tão faceira quanto mosca em tampa de xarope, sentada tranquilamente esperando o avião partir – sem mim. Eu tenho medo de voar, no sentido real e metafórico. Jung, perguntei para Renata, minha terapeuta, explicaria? Por intervenção de uma sofisticada ironia, ali muito bem acomodada, de pernas para o ar – mais especificamente em cima de duas grandes malas pretas – enquanto comia biscoito de polvilho integral, no terminal 2 do Aeroporto Internacional de Guarulhos-São Paulo, a vida materializou a minha autossabotagem cotidiana. E eu nem tinha alguém para segurar a minha mão, como já cantara meu conterrâneo Belchior.

Meu destino seria o Ceará. E precisei ser forte para me recompor da decepção de não ir naquele 21/12 para a capital do meu coração. Depois de protagonizar cenas de um blockbuster adolescente, na tentativa inócua de recuperar o tempo perdido e, claro, o meu voo, liguei para minha mãe e comuniquei que chegaria três dias depois, exatamente na véspera do Natal. Pelo horário de chegada previsto, a minha ceia estava garantida. Problema resolvido. Naturalmente, não sem um “breve” choro, posto melodramática que sou.

Aeroporto. Lugar de encontros e despedidas. Enquanto me recompunha e minhas pálpebras superiores pesavam por um inchaço anormal, ali passageira perdida de mim, comecei a pensar em quantas pessoas passaram pela minha vida. Lembro dos amores que pareciam eternos. Quem nunca se deixou queimar pelo fervor de uma paixão, cuja brasa sem que se saiba como e quando se esvaiu no ar, feito uma fogueira que se vê vencida por uma chuva fortuita e insistente? As maiores loucuras de amor são sempre as que não fazemos. O expediente do coração sempre terá privilégios sobre qualquer razão vã. E os amores passam. Quem fica é a pessoa que você vê no espelho, todos os dias, especialmente quando o coração está no modo avião.

Os amigos também seguem rumos diferentes. O contato diminui. Aquela relação diária vai se dissipando como uma nuvem num céu de brigadeiro. É a rotina da vida que nos engole como um alçapão do mundo contemporâneo. Mas, verdade seja dita, há amigos que te marcam como nódoa de manga numa camisa branca de linho. Passam-se os anos e o reencontro vai sempre parecer a continuação daquela conversa boa e boba que não deu para terminar numa terça-feira à noite calorenta e sem vento.

Pus-me a pensar: Quantos aviões de papel cruzaram o meu caminho? E tem muito valor estes que atravessam o nosso destino e depois vão embora, num voo de rota desconhecida. Pessoas, amores e amigos, me deixaram. E eu, a eles. A gente se deixa enquanto realinha novos caminhos, traça metas incompatíveis e olha mais para as próprias prioridades. Nada disso é ruim ou errado. É apenas a vida nos ensinando que assim como os outros são atores passageiros de nosso roteiro particular, também nós somos deles. É saudável e necessário fechar ciclos e isso inclui afastar-se de pessoas, não por que não sejam mais importantes. Mas, por que em algum momento reorientamos nossa bússola pessoal e é impossível carregar todos a tiracolo até o próximo destino.

Não dá para pilotar um avião com overbooking de sentimentos e interesses díspares. É como me disse alguém especial: “Tudo que é pesado impede a gente de decolar”. Por sorte, as boas memórias não pesam, mas, mais do que isso, nos dão impulso para sairmos do lugar e colo para uma aterrissagem suave no terreno de nossos medos e incertezas. E, assim, jamais estamos sozinhos. Nem mesmo no maior aeroporto do país em meio à uma multidão de transeuntes estranhos.

“Você também não conseguiu pegar o voo?”, interpela-me uma senhora enquanto faço uma videochamada para Fortaleza. “Não, estou explicando isso para minha família”, respondo ressabiada à mulher que me sorri e diz que conseguiu um voo para Teresina-Piauí, no dia seguinte após perceber que eu também perdera o meu voo. “Está vendo, minha filha, não é só você!”, encoraja-me a minha mãe. É, de fato. De um jeito ou de outro, nunca estamos sozinhos.

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