REFLEXÃO

Estamos mais próximos?

O último réveillon: o contexto da festa, a rigor, de confraternização, viceja reflexões sobre as implicações da forma pela qual interagimos frente à comunicação digital

Por Francisco Estefogo | 01/02/2024 | Tempo de leitura: 6 min
Taubaté

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Francisco Estefogo
Francisco Estefogo

A cena, registrada em várias partes do mundo que, a princípio, presenciaria as calorosas e ímpares honras humanas à chegada de 2024, é no mínimo dantesca e paradoxal, para não dizer bizarra: milhares de celulares a postos para eternizar a famigerada queima de fogos, nas exatas 23h59 do último 31 de dezembro. No entanto, não havia qualquer sinal de manifestação carinhosa entre os que ali estavam, quando seria, a priori, uma confraternização mundial. Apenas a luminosidade dos indefectíveis aparelhos, envoltos pelas mãos atentas a cada lampejar do manjadíssimo show pirotécnico, fazia as vezes dos arautos da festa solene. 2024 chegou, sem testemunhar os afetuosos abraços e beijos de outrora, ou ainda os já parcos “eu te amo”, pelo menos nos primeiros 30 minutos do dia 01 de janeiro.

O acontecimento na noite de Ano Novo viceja reflexões sobre, do ponto de vista da tecnologia, o que foi produzido, à primeira vista, para facilitar a nossa vida (indubitavelmente, os afazeres diários estão muito mais fáceis e rápidos!). Embora sejam inúmeras as vantagens, as modernas formas de interagir sinalizam ter, a cada ano que passa, efeito rebote: estamos mais distantes e solitários, principalmente depois da pandemia, evento que obrigou o mundo funcionar, de alguma forma, pelos caminhos virtuais. O surto epidêmico parece que passou, mas a vida continuou e se fortaleceu pelos meios cibernéticos, especialmente, no que se refere ao contato com a família, os amigos e, ocasionalmente, os ditos “mozão”.

 É inegável o fato de que o advento da tecnologia da comunicação nos proporciona, a um singelo movimento, estar em contato com qualquer pessoa em (quase) qualquer recôndito do planeta. No entanto, o que parecia ser um catalisador de relações pessoais está nos deixando mais preguiçosos para manter vínculos. “Por que irei até lá se posso mandar uma mensagem? Por que vou ligar neste dia especial se poucos cliques na tela do celular já fazem as vezes?” são pensamentos corriqueiros que atravessam o nosso fazer cotidiano. Para citar alguns, nos grupos de mensagens, se há algum aniversariante que seja lembrado, usualmente, há um enxurrada de congratulações de pessoas que, normalmente, nem conhecemos. Os votos de felicitações são enviados, muitas vezes, só para não ficar “mal na fita”, principalmente, quando há algum líder ou chefe “presente”. Sem contar os imperecíveis e repetitivos “bom dia” nos grupos de família e, esporadicamente, de trabalho. Certamente, todo esse ferramental tecnológico simplifica situações que no passado nem aconteciam, em virtude de, entre outras oportunidades, propiciar condições para construirmos novas amizades, com as chamadas de vídeos, por exemplo. Igualmente, é possível visitar lugares antes desconhecidos, por mais que sejam apenas pela internet. Em suma, temos o mundo aos nossos pés ao acessar a tela do celular ou do computador. À vista disso, o que essa dinâmica hodierna, sem voltas, aventa, no entanto, é a iminente perecibilidade dos afagos entre nós humanos.

Entende-se, assim, que a facilidade e a praticidade dos artefatos digitais, no que diz respeito à interatividade, podem nos tornar profundamente mais pragmáticos, superficiais, indolentes, frios e individualistas. O episódio do último réveillon coteja um dos pensamentos de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), filósofo grego cujo cerne se fundamenta no empirismo, ao conceber que “o homem é um animal social e que a vida em comunidade faz parte da própria essência humana”. Será que a nossa natureza afetuosa está, então, com os dias contados? Ou ser amoroso significa, na atualidade, meramente enviar mensagens de “Feliz Natal”, “Feliz Ano Novo” ou “Feliz Aniversário”, e por aí vai, sem falar com a pessoa o resto do ano? Ou ainda a vida em sociedade, daqui para frente, será cada vez mais cibernética e apartada, já que, como assevera Zygmunt Baumann (1925-2017), sociólogo e filósofo polonês, “estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo"?

É sabido que manter o convívio presencial afetivo, principalmente com pessoas de diferentes idades e contextos culturais, é um bálsamo para a satisfação com a vida e o desenvolvimento pessoal. Contudo, devido ao exacerbado uso dos aparatos tecnológicos para se comunicar, o paradoxo se configura a partir do isolamento em relação ao distanciamento físico oriundo da escassez dos encontros dos corpos. Estudos recentes revelam que 40% dos jovens adultos entre 18 e 30 anos não tiveram qualquer tipo de relação física sexual em 1 ano. Uma das implicações desse desinteresse, no Japão, por exemplo, foi a vertiginosa queda na taxa de natalidade, ocasionando problemas de ordem econômica e social. Ademais, alguns relatam titubear ao tentar puxar um assunto quando, eventualmente, encontram amigos de longa data, pois nos últimos tempos apenas mensagens pelos celulares foram trocadas.

Por mais que a solidão, derivada da fragilidade e fugacidade dos vínculos contemporâneos, faça parte da nossa existência, e que, por vezes, oportuniza o cultivo da vida interior, além do pavimento, como diria Nietzche (1844-1900), filósofo alemão, em direção ao caminho para a construção do espírito livre de caráter profilático, de modo de que não nos desviemos para rotas alheias, é patente considerar a sensação de abandono por conta da falta do convívio social.  Transtornos como ansiedade, fobias e depressão são as implicações mais comuns, passando pela antipatia e a intolerância. Ao resgatar a legitimação da experiência empírica como elemento central, as proposições aristotélicas, a saber, conhecer e entender o mundo, embora tenham mais de 2 mil anos, ainda têm sua validação. Entretanto, “a vida em comunidade”, como alertou o pensador da Grécia antiga, mudou sobejamente, posto que a vivência virtual, às vezes, sobrepõe a presencial. Frente à concretude do cenário moderno, amplamente atravessado pela informação digital, recurso que, de algum modo, não nos aproxima pela perspectiva dos estímulos da interação corporal, os beijos e abraços, possivelmente, estejam se enfileirando na lista das características humanas em extinção. No decorrer da história, já aniquilamos muitos animais e plantas. Agora, a considerar o modelo interativo da hodiernidade, desenha-se um horizonte com uma conjuntura direcionada para o “físico carinhocídio”, visto que o único toque que daremos é, sobretudo, na tela dos onipresentes celulares.

Ainda que a renúncia das carícias seja o eventual panorama da passagem de 2024 para 2025, não custa nada dar uma chance para ternura e o carinho. Acreditar na nossa essência humana como “uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra”, excerto do magnânimo livro "Cem Anos de Solidão", escrito pelo colombiano Gabriel García Márquez (1928- 2017), pode ser um alento para o renascimento da maneira (mais) humana, aquela das antigas, de tratar os outros com muitos beijos e abraços, em adição ao já tão sucumbido e escasso “eu te amo”.

* Francisco Estefogo é membro titular da Academia Taubateana de Letras, pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. No momento, é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e também na PUCSP.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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