ARTIGO

Perdemos o senso de humanidade?

Francisco Estefogo é membro titular da Academia Taubateana de Letras, pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada

Por Francisco Estefogo | 01/11/2023 | Tempo de leitura: 7 min
Taubaté

Em períodos hodiernos tão aviltantes, funestos e beligerantes, de polarização ideológica como combustível para as regulares fake news e outros delírios retóricos inconsequentes, invariavelmente nos perdemos na velocidade da internet e suas adjacências de capilaridade global, terreno fértil para o mundo dos exagerados comentários sem embasamento argumentativo, da postura de recalque, soberba, inveja e, por conseguinte, de distanciamento, isolamento e negligência com o que e quem nos rodeia. A considerar a banalidade alimentada, sobretudo, pelas redes sociais, que ultimamente são os insumos das construções sociais e, portanto, sedimentadoras de estereótipos, como resultado, geramos, de alguma forma, a homogeneidade em uma sociedade superdiversa, por mais paradoxal que isso possa parecer.

Neste multifacetado século XXI, irrestritamente regido pela tecnologia e pelo consumo exacerbado, em adição de estar saturado pelas ideias pré-estabelecidas colonizadoras e tomado pelas empedernidas escolhas individuais acríticas e ações, muitas vezes, egoístas e incautas, apreende-se, então, que, a rigor, perdemos o senso de humanidade, até porque, ultimamente, vivemos amiúde exilados no nosso cercadinho, com a inteligência artificial já fazendo as vezes do homo sapiens e, claro, com o ubíquo celular nas mãos. Aos olhos de hoje, esse movimento parece algo banal e rotineiro. Contudo, ficar à espreita da forma como nos orientamos por declarações superficiais empreendedoras de narrativas de submissão, indolência e obliteração e que, por conseguinte, afundam-nos na ablepsia é a ordem da vez para tentarmos recuperar a ourivesaria da nossa natureza humana: o cuidado com o outro e, inadiavelmente, com nossa morada terrestre.

A emoldurar as pantagruélicas oscilações climáticas, talvez agora de modo mais difuso e frequente, uma sensação que sempre atravessou o ser humano, ou seja, o medo, volta a ser, com frequência, mais premente e aterrorizador. Consequentemente, por mais parecidos que sejamos, do ponto de vista social da modernidade, forjados num farsesco ambiente de comportamentos individualistas, de pedantismo, de preguiça para a manutenção de relacionamentos e de desleixos e, assim, de vínculos superficiais, esse estado emocional de temor, que surge devido à consciência frente a uma circunstância de perigo, a priori, resgata na nossa essência humana. Nesse sentido, Thomas Hobbes (1588-1679), teórico político e filósofo inglês, na irreparável obra Leviatã, ratifica essa semelhança humana ao afirmar que “a natureza fez os homens tão iguais que embora por vezes se encontre um homem mais forte, ou de espírito mais vivo, não seria uma diferença considerável para que pudesse reclamar qualquer vantagem sobre os demais”. Ou seja, estamos todos no mesmo barco. Dessa forma, e necessário compartilhar uma direção comum acerca dos vilipêndios planetários e remar juntos com o fim de prospectar mudanças insurgentes e emergentes.

Nesse esteio, as últimas tragédias naturais no Rio Grande do Sul, no Amazonas, na Líbia, no Marrocos e no Afeganistão, ocorridas nos últimos meses, corroboram o fato que o pavor, frente a esses desastres de envergadura apocalíptica, de alguma forma, incontroláveis, recupera, à primeira vista, a nossa situação como humanos no que se refere à nossa inerente fragilidade e tamanha pequenez ante às forças do cosmo. Para além dos danos materiais, depredações da fauna e da flora, e prejuízos econômicos de milhões de reais, são quase 50 vidas ceifadas na região sul do Brasil. No Lago Tefé, situado no interior do Amazonas, mais de 100 botos foram encontrados sem vida devido à falta de água. Ademais, fala-se num número superior a 15 mil pessoas dizimadas no já assolado terreno líbio. No Marrocos, contam-se quase 3 mil mortes, por conta do terremoto de 6,8 da escala Richter, um dos mais destrutivos na história do país africano. No Afeganistão, os tremores deixaram mais de 2 mil mortos e 9 mil feridos. A despeito da calamidade global, é interessante observar os lampejos de senso de humanidade concernente à mobilização de inúmeros países para, de algum jeito, ajudar as vítimas dessas calamidades. Dentre outas nações, o Brasil, o Japão, a França, os Estados Unidos, Israel, o Qatar, a Argélia, os Emirados Árabes Unidos, a Turquia, a Alemanha e a Jordânia se prontificaram a cooperar com cobertores, equipe médica e voluntários, caminhões, camas, tendas, vacinas, remédios, alimentos, entre outros suprimentos. Logo, vislumbra-se que o senso de humanidade ainda tem alguma chance de emergir e se potencializar.

Indubitavelmente, ainda que os terremotos sejam episódios comuns em algumas partes do planeta, estudos mostram que muitas das mais recentes catástrofes atinentes ao clima são derivadas de uma conjunção de fatores, aliadas ao implacável aquecimento global, por mais que alguns ainda neguem, bem como à inépcia e ao descaso humano com o meio ambiente. Na pressa da era moderna, tão afeita à efemeridade das redes sociais - sempre elas -, talvez, nessa seara de destruição planetária, somos parecidos quanto à perda do senso de humanidade, pois desdenhamos a vida da Terra, nosso lar, quando, dentre outras execráveis atividades humanas dos tempos modernos, desmatamos floretas, poluímos rios, jogamos lixo em qualquer lugar e consumimos avidamente tudo o que o mercado produz, aliciados pelo onipresente marketing.

Frente ao exposto, é interessante notar o nosso pânico de ver cidades inteiras serem devastadas em questão de minutos e de saber que infinitos óbitos compõem as estatísticas fúnebres.  Tamanho sofrimento possibilita a reflexão sobre a importância de se alimentar o resgate do senso de humanidade. No escopo da ameaça do aniquilamento humano, a vontade e a necessidade de querer amparar o próximo, posto numa situação para lá de vulnerável, afora o sentimento de sermos diminutos perante a grandeza e a potência no universo, oportunizam-nos elementos para refletir, se quisermos e tivermos vontade, sobre como podemos sobrepujar as fraquezas humanas e elevar o senso de humanidade, sobretudo, solidário com o nosso próximo e o meio ambiente. Para tanto, é preciso encontrar uma força interior a partir, por exemplo, dos infortúnios supracitados, com a intenção de superar os paradigmas em vigor, isto é, o individualismo, a inatividade, a prostração e a displicência para com o nosso astro hospedeiro e com o coletivo, sentimentos que negam a própria existência humana. Destarte, é provável que, ao deixar a nossa condição de seres anestesiados e daltônicos no que toca ao que está acontecendo no globo terrestre e à cacofonia que a vida cotidiana às vezes eclipsa, possamos criar condições para suplantar a vigente letargia e inércia e, ao mesmo tempo, sermos arrebatados da indefectível vaidade e empáfia humana.

Na contramão da condição de obediência, anestesia e conservação da pretenciosa cultura consumista massificada e uniformizada, e na toada de superação do medo e da submissão, o filósofo alemão Nietzche (1844-1900) propõe o ser übermensch, que diz respeito ao além-homem, além-do-homem ou além-do-humano, ou, a mais conhecida tradução literal, super-homem. Trata-se, grosso modo, do sujeito que transcende as esferas sociais morais vigentes e, então, evolui embasado na alforria de fatos e valores do passado com o fim de evitar a autopiedade. No mais, aceitar a possibilidade de viver algo já experenciado para transcender e se tornar ainda mais valente em relação ao que já passou, assim como amar a vida que temos (amor fati), de jeito a suplantar ressentimentos, são outras noções necessárias de extrapolação. À vista disso, compreender os alertas do planeta é central. Para tanto, o destemido guerreiro proposto pelo filósofo do icônico bigode deve ser corajoso, forte, inteligente, astuto, ativo e livre para criar suas próprias representações. Em outras palavras, o super-homem elabora novas ordens por meio da vontade da potência, principalmente, levando em conta a coletividade como horizonte equitativo.

Dado o fato de que, ante os reincidentes devastadores flagelos da natureza, a iminente apreensão se avizinha, é patente afirmar que, porventura, precisamos vestir a capa desse herói nietzschiano para assimilar as advertências que a Terra está difundindo. Outrossim, também deveríamos imergir no nosso interior para viver a vida com mais profundidade, intensidade e criticidade, com vistas a encontrar o equilíbrio e emergir para combater o niilismo alusivo à perda do senso de humanidade. José Saramago (1922-2010), escritor português laureado com o Nobel de Literatura em 1998, reitera a nossa deficiência de enxergar os pedidos de socorro do nosso lar terrestre ao apontar que “o egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos próprios interesses.”

* Francisco Estefogo é membro titular da Academia Taubateana de Letras, Francisco Estefogo é pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. No momento, é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e também na PUCSP.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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