A aproximação do Natal, tradicionalmente associada a celebração e mesas fartas, expõe uma realidade dura para milhares de famílias brasileiras: a falta de comida dentro de casa. Em muitos lares, a principal decisão não envolve qual presente comprar, mas se haverá algo para colocar no prato no dia seguinte.
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Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 18,9 milhões de famílias vivem algum grau de insegurança alimentar no país. Em estados do Sul, como o Rio Grande do Sul, a situação também preocupa: cerca de 1,7 milhão de pessoas não têm acesso regular a alimentos, e a fome atinge de forma especialmente severa lares com crianças.
A escassez de alimentos na infância deixa marcas profundas. Segundo levantamentos oficiais, 3,3% das crianças de 0 a 4 anos e 3,8% das que têm entre 5 e 17 anos convivem com a forma mais grave da insegurança alimentar — quando não há comida garantida todos os dias. Entre 2021 e este ano, mais de 1,2 mil crianças e adolescentes foram internados por desnutrição apenas no território gaúcho.
Especialistas alertam que os efeitos vão muito além da perda de peso. A nutricionista e sanitarista Mariana Petracco de Miranda explica que a desnutrição compromete o desenvolvimento físico e cognitivo. “Fraqueza, tontura, queda de cabelo, dificuldade de concentração e alterações de comportamento são sinais comuns. O impacto é global e pode acompanhar a criança por toda a vida”, afirma.
Nas periferias, a fome tem rosto feminino. Pesquisadores apontam que mães solo, majoritariamente mulheres negras, estão entre as mais afetadas pela falta de acesso a alimentos adequados. Muitas recorrem a estratégias extremas para proteger os filhos, como reduzir ou eliminar a própria alimentação.
É o caso de avós e mães que silenciam a dor para que as crianças não percebam a gravidade da situação. Em casas onde a despensa está vazia, o choro costuma acontecer longe dos olhos dos pequenos, enquanto o medo do amanhã se torna rotina.
A insegurança alimentar raramente vem sozinha. Doenças, desemprego e o alto custo de vida ampliam o problema. Famílias relatam que precisam escolher entre comprar medicamentos, pagar contas básicas ou garantir o mínimo de comida. Em períodos simbólicos como o fim do ano, o dilema se intensifica: qualquer gasto extra pode significar dias sem alimentação suficiente.
“O que mais machuca é ouvir o pedido de um filho e não ter como atender”, resume um pai desempregado, que descreve o Natal como um período de angústia, não de festa.
Para o pesquisador Juliano de Sá, os números revelam apenas parte do drama. “Essas estatísticas têm endereço e história. Crianças e adolescentes estão crescendo em um ambiente de privação, e isso exige resposta imediata”, destaca. Segundo ele, o enfrentamento passa necessariamente por políticas públicas contínuas, investimento social e garantia de acesso a alimentos saudáveis, especialmente em lares com crianças.
Enquanto soluções estruturais não avançam, histórias de medo e resistência se multiplicam. Para muitas famílias, a esperança é simples e urgente: não deixar que a fome decida o futuro de seus filhos.