- Você quer morrer? – falou o residente médico para o paciente, em meio a sua consulta. Como se a frase não fosse impactante o suficiente pelo seu conteúdo, ele a repetiu enquanto folheava nervoso o prontuário cheio de folhas de exames, com um tom mais alto e impositivo, de olhos arregalados por detrás de óculos de lentes grossas – “Você quer morrer?”.
É óbvio que o paciente não queria morrer, ninguém verdadeiramente quer. Contudo, acredito que ele também não quisesse estar passando pela situação vexatória que eu testemunhava. Era o começo do ano de 2000 e eu era estudante do sexto ano de medicina, trabalhando com residentes no ambulatório de endocrinologia. Nesta época, ao nos depararmos com um caso “interessante” para o ensino, era comum que todos parassem o que faziam para acompanhar o atendimento, ali no caso, feito pelo médico-residente.
O paciente, um diabético que apresentava sintomas importantes de descompensação da doença, estava tenso em ver que a sua consulta que havia começado individualmente com o médico-residente, estava agora acompanhada por mais cinco estudantes (eu entre eles) e um docente. O caso era delicado, exames de controle que ele trazia eram bem ruins e a situação se repetia já há alguns meses.
Pelo jeito o residente já o havia questionado sobre possíveis transgressões à dieta, que já era rígida demais e ele havia veementemente negado. Agora, contudo, diante de uma verdadeira plateia silenciosa, a mesma pergunta feita pelo docente recebera uma resposta divergente:
- “Ah, de vez em quando a gente sai fora um pouquinho, né” – disse com a voz baixa e olhando para o chão.
A frase dele foi a motivação para o descontrole do médico-residente, que aparentemente queria ser enfático na sua expressão, mas conseguindo ser ameaçador, deixando o paciente “enterrado” na cadeira, querendo sumir da sala.
“- Se continuar assim, você vai morrer!” – dizia o residente de uma maneira tão incisiva que, por um momento, achei que ele mesmo iria cometer um homicídio e poupar o trabalho da doença. Lembro-me de pensar que esse tipo de atitude era pouco útil para o paciente, pois, dado ao medo e a humilhação ele pouco iria ouvir as ameaças.
Anos depois, ao estudar sobre medicina psicossomática e o significado simbólico dos sintomas, descobri que minha percepção não estava errada; o diabetes carregava em si um estigma de células viverem em isolamento e escassez, incapazes de absorver o alimento disponível na corrente sanguínea (a glicose) pela resistência dos seus receptores de específicos, manifestos na membrana celular.
Supostamente, esse efeito seria provocado ao associar palavras duras e ameaças com temáticas de alimentação, seja física ou emocional, fazendo com que o “corpo” da pessoa entendesse que havia um risco em manifestar a sua satisfação em comer doces, sob pena de ser agredido, humilhado... como aconteceu na minha frente, naquele dia.
O conjunto todo, somado à “autoridade do avental branco” que todo médico possui, mesmo que inconscientemente, trouxe a minha mente a importância de medir as palavras, pois, tal como um sortilégio mágico, elas têm poder. Aí no caso, para o mal, contribuindo com a moléstia do paciente.
Alexandre Martin é médico especialista em acupuntura e com formação em medicina chinesa e osteopatia (xan.martin@gmail.com)