Os municípios brasileiros são sempre ponto de contato entre o cidadão e o Estado. São nas prefeituras que chegam os pedidos por saúde, educação, assistência social, infraestrutura e segurança pública. Mas, apesar de serem constitucionalmente responsáveis por grande parte da execução das políticas públicas, os municípios não detêm os recursos suficientes para fazê-lo com autonomia, planejamento e eficiência. A conta, como de costume, termina no colo dos prefeitos, que vivem à mercê de articulações políticas em Brasília para garantir emendas parlamentares ou repasses voluntários. É urgente discutir a fundo a estrutura do nosso pacto federativo, em especial no que tange à concentração de receitas na União e à forma como são feitas as transferências obrigatórias e voluntárias. A Constituição 1988 foi progressista ao descentralizar competências, mas não descentralizou o financiamento dessas responsabilidades.
A cada ano, os prefeitos se tornam mais dependentes de emendas parlamentares, as quais, ainda que importantes, são insuficientes, engessadas e marcadas por critérios políticos e operacionais que nem sempre refletem a urgência real dos municípios. A grande maioria dessas emendas vai para saúde e educação, com critérios técnicos, portarias específicas e exigência de planos de trabalho que dificultam seu uso rápido e direto na solução de problemas estruturais. E, pior, são recursos que passam antes pela indicação de deputados, e não chegam aos municípios de forma automática. Nesse cenário, é legítimo questionar: onde estão as associações municipalistas na defesa de um novo modelo de partilha dessas emendas? Por que não se discute a criação de um fundo permanente de apoio aos municípios, com repasses diretos e discricionários, para manutenção de suas atividades básicas — sem depender da intermediação política e sem a burocracia dos convênios federais?
E, ainda, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), criada para preservar o equilíbrio das contas públicas, termina por punir os bons gestores municipais que, mesmo com planejamento, não conseguem fechar suas contas diante de um modelo de financiamento centralizado, falho e insensível à realidade local. Fala-se em teto de gastos, em controle de despesas com pessoal, mas não se fala no desequilíbrio estrutural do pacto federativo, que obriga os municípios a gerenciar obrigações com pouca ou nenhuma receita nova. Além disso, estamos construindo uma cultura institucional perigosa: a da dependência política do Congresso Nacional. Os municípios, em vez de atuarem com autonomia constitucional, passam a depender da boa vontade de parlamentares, criando uma “política de esmola institucionalizada”. Isso não é municipalismo — é centralismo disfarçado de cooperação. E é ainda mais preocupante quando observamos que, com o fenômeno da internet e o avanço das pautas nacionalizadas, a representatividade municipalista no Congresso está em declínio. A pauta local perdeu espaço para os grandes debates ideológicos e de rede social.
Com eleições gerais se aproximando, 2026 precisa ser o ano em que os municípios escolham representantes que tenham compromisso claro com a revisão do pacto federativo e com a autonomia financeira municipal. Não é mais possível que as cidades continuem de pires na mão enquanto União e Estados disputam protagonismo orçamentário.
Por fim, registro minha preocupação com a reforma tributária, que, embora necessária, ainda carece de garantias explícitas de que os municípios paulistas — responsáveis por mais de 40% do PIB industrial do país — não sofrerão perdas reais de arrecadação. O cenário de incerteza fiscal que se avizinha exige firmeza, organização e articulação técnica e política. Está mais do que na hora de retomarmos, com seriedade e profundidade, o debate sobre o novo pacto federativo — não para fortalecer a máquina pública, mas para garantir dignidade à ponta da linha, onde o cidadão vive e onde o Estado se manifesta com mais intensidade: o município.
Marcelo Silva Souza é advogado e consultor jurídico (marcelosouza40@hotmail.com)