OPINIÃO

Emma e Charles


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Romance do francês Gustave Flaubert (1821/1880), “Madame Bovary” apresenta a mais famosa adúltera do século 19. Num período em que adultério era considerado pela moralidade da época um crime de lesa-pátria, Emma Bovary – a protagonista do romance – sobe ao pódio das adúlteras mais conhecidas. Nesse panteão de infames, divide espaço com Anna Karenina, do romance homônimo do russo León Tolstói (1828/1910), com Luísa, de “O primo Basílio”, do português Eça de Queiroz (1845/1900) -- ainda que Luísa seja insossa, diferente da ardilosa Emma e da refinada Anna. No Brasil, a Capitu, do machadiano “Dom Casmurro”, poderia ocupar um lugarzinho aí se nós leitores não ficássemos com dúvidas permanentes e pertinentes, por não podermos confiar no narrador, o mimado, cruel e ciumento Bento Santiago.

Mas voltemos a “Madame Bovary”. O romance conta a história de Emma, é claro, mas também a de Charles, o marido enganado. O livro abre e fecha com cenas protagonizadas por ele. Abobalhado desde sempre, indeciso, sem saber como agir em noventa e oito por cento das situações (e claudicando nas ações dos outros dois por cento), Charles é um panaca. Simpático, bom moço, mas panaca. Na definição da própria Emma, Charles é “aquele coitado que adora” a esposa. Tadinho. Nem desconfia da arapuca em que se meteu.

Mas quem, afinal, é essa jovem senhora, protagonista do romance? Órfã de mãe, Emma foi criada pelo pai, pequeno proprietário rural do interior da França. Foi interna de um convento. Abasteceu sua imaginação com romances românticos açucarados, sonhou uma vida da qual nunca pode usufruir. Casou-se com Charles, médico recém-formado que prestara atendimento ao pai de Emma. Ela imagina viver a partir do casamento um conto de fadas, valsando bailes requintados, circulando por salões aristocráticos. Mas o monótono cotidiano da cidadezinha interiorana em que o marido vai trabalhar embota-lhe a fantasia. Emma se considera a mais infeliz das criaturas, vê a si mesma como uma mulher refinada convivendo com roceiros malcriados e ignorantes. Ela se acha “a” cara, muito superior ao seu entorno.

O casal tem uma filha, por quem Emma não cultiva a menor estima. Gasta muito. Enche a casa de badulaques e o guarda-roupas de vestidos e adereços. Contrai dívidas altas, cujos modestos rendimentos do marido não podem saldar. Envolve-se com um amante, Rodolfo, e depois com outro, Leon. O marido traído, como dizem ser o habitual, de nada desconfia. Os credores vêm cobrar. Emma desespera-se. Os ex não a ajudam. Emma se mata.

Esse resumo de enredo não dá conta da grandeza do romance. Do perfeccionismo e inventividade de seu autor. Flaubert é muito criativo. Exemplo: em “Madame Bovary” aparece pela primeira vez a narração simultânea de duas cenas diferentes. Recurso que a literatura incorpora e que o cinema utiliza demais, essa simultaneidade nasce primeiro da pena de Flaubert. A banal história de um casamento fracassado é contada de forma esplendorosa, com o rigor e a grandiosidade de seu autor. Uma dessas leituras a que devemos nos entregar – e para a qual devemos voltar vez por outra.  

Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)

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