OPINIÃO

Tudo é história

21/04/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Para uma cidade que teria nascido entre 1615 e 1655, Jundiaí preservou muito pouco de sua história. Não fora o empenho de alguns abnegados, bem mal compreendidos à época, o Solar do Barão de Jundiaí também teria sido alvo de demolição, para ser substituído por um caixotão de concreto, sem estilo e sem beleza. Também a chamada "Ponte Torta" teria o mesmo destino. A ponte em arco romano, sobre a qual passava o bonde puxado a burro, é um exemplar autêntico da solução da engenharia que procurava conciliar utilidade e beleza. Não é torta, adjetivo que serve mais para designar a mentalidade de quem pretendia removê-la.

Jundiaí foi se desfigurando. Perdeu o "porto do sal" da rua do Rosário, de onde foi abaixo o "Asylo dos Velhos". Derrubaram a Escola Normal, na esquina da Barão com a Padroeira. A bela residência de Generoso Mário Bocchino, que fora a primeira sede do Tênis Clube, esquina da Rangel com Padroeira. Tantos testemunhos de eras que nunca mais existirão serviram à sanha da substituição do belo pelo tosco.

É preciso zelar pela preservação de alguns ícones que resistiram à fúria. Alguns deles estão no Cemitério Nossa Senhora do Desterro, a velha necrópole que ainda mantém os mausoléus da nobreza jundiaiense. Os túmulos dos Barões de Jundiaí, dos Barões do Japi, da fidalguia Queiroz Telles, mereceriam proteção singular da Municipalidade.

O mármore branco utilizado no século XIX já se encontra desgastado. Já desapareceram partes importantes dos principais sepulcros. O turismo funéreo existe em todo o mundo civilizado. O Père Lachaise, em Paris, conta com folder indicativo dos lugares em que enterrados os seus principais moradores. Todos os dias há excursões para quem quer saber onde repousam Chopin, Alan Kardek, Oscar Wilde, La Fontaine, centenas de nomes ilustres. Jim Morrisson, que morreu tão cedo, ainda hoje congrega animados grupos de jovens que ali se encontram, cantam e se confraternizam, em memória de um ídolo que sobrevive à própria morte.

O cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, além de verdadeiras obras de arte, é um chamariz para quem quer se lembrar de Evita Peron, a legendária mulher do presidente Juan Domingo Peron.

A capital paulista deu um exemplo de como conservar esses locais que deveriam ser de oração, mas também se inserem no roteiro turístico. A Consolação é o lugar em que foram enterrados Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Campos Salles, a Marquesa de Santos, Luiz Gama, José Bonifácio o Moço e milhares de pessoas célebres. Além da concessão a particulares, a Prefeitura fez inserir no contrato que o concessionário deveria preservar as sepulturas de vultos históricos. Ele não só atendeu ao dispositivo contratual, mas fez inserir um QR Code nesses túmulos. O visitante pode focalizar com seu celular esse indicativo e saber mais sobre quem ali permanece em repouso eterno.

O sociólogo José de Souza Martins é um especialista em assuntos da memorialística funérea. Costuma levar legiões de alunos para visitar a Consolação, o Araçá, o cemitério São Paulo, o do Santíssimo Sacramento, a necrópole da Ordem Terceira do Carmo. Em todos eles, está abrigado um patrimônio que não pode ser negligenciado. A lembrança de quem antecedeu as atuais gerações, que deixou um legado de obras, atividades, edificações materiais e intelectuais que constituem o cerne de nossa história.

Todas as cidades deveriam cuidar melhor de seus campos-santos. Quem se esquece de que deve fazê-lo, esquece-se também de que esse é o destino de todas as pessoas. A morte, a mais democrática das ocorrências, não poupa ninguém. Visitar quem já foi ajuda a inibir a vaidade, o orgulho, a ambição desmedida. Ali, nada mais cabe senão os restos mortais de quem pode ter sido importante, e hoje não passa de uma lápide.

José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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