RETRATO DO PAÍS

Em potencial, favela precisa de ajuda e também espaço de fala

Como trabalhos conjuntos entre o poder público e ONGs tenta enfrentar desigualdade social e valorizar o que sai da favela

Por Mariana Meira | 20/08/2023 | Tempo de leitura: 5 min

DIVULGAÇÃO/CUFA JUNDIAÍ

Presidente da CUFA Jundiaí, o Festa: 'tudo o que é visto como ruim a gente quer transformar em ouro'
Presidente da CUFA Jundiaí, o Festa: 'tudo o que é visto como ruim a gente quer transformar em ouro'

Quando o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, visitou o Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, no início do ano, opositores do governo federal o acusaram de ter conivência com os criminosos que atuam na favela. Foram críticas que levantaram um complexo debate. "É um retrato de como a sociedade enxerga esses espaços das favelas, como se estivessem fora da cidade, da sociedade", analisa Rafael Soares Gonçalves, autor do livro Favelas do Rio de Janeiro: História e Direito e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio).

Essa invisibilidade social oculta grandes energias de força do bem que nascem dessas comunidades. Foi pensando nisso que, há mais de 20 anos, nasceu das mãos de jovens de várias favelas, principalmente negros, uma organização que até hoje luta para garantir um espaço de expressão: a CUFA (Central Única das Favelas), hoje presente em cerca de 5 mil favelas pelo Brasil. Com o rapper MV Bill como um de seus fundadores, a ONG promove atividades nas áreas de educação, lazer, esportes, cultura e cidadania, com o objetivo de colocar luz sobre o que, de fato, uma favela é. "Muita gente estranha a palavra 'favela' e prefere dizer 'comunidade', 'periferia', 'submoradia'. Também existe uma tendência de romantizar a favela, como se ela tivesse que ter um barraquinho, um esgoto a céu aberto, um cachorro. Mas tudo isso faz a gente perder a força. Nesse território também houve avanços e conquistas. Os barracos viraram casa de alvenaria, surgiram muitos conjuntos habitacionais em um formato de reurbanização", comenta Eduardo Ramalho, presidente da CUFA Jundiaí.

Não é à toa que o apelido de Eduardo, há muitos anos, é Festa. Promotor de eventos, com experiência ampla no fomento ao rap, ao hip hop e ao samba que vem da favela, ele conta como, seguindo a lógica dos fundadores da CUFA, prefere olhar para o que há de rico em meio à pobreza. "Por isso que o símbolo da CUFA é um anu, pássaro associado ao azar e mau agouro. Tudo o que é visto como ruim ou que a sociedade generaliza a gente quer transformar em ouro."

Para Festa, contudo, a valorização da favela tem que caminhar junto com o combate à desigualdade social - e esse trabalho deve envolver todas as camadas da sociedade e esferas de poder. "É preciso reconhecer o potencial econômico das favelas, que são a base da pirâmide. A gente movimenta trilhões. E a gente quer participar das discussões sobre esse dinheiro. Não quer ser um ratinho de laboratório para as pessoas estudarem como a gente vive, enquanto a favela continua de fora. Se as pessoas detentoras do poder, ou seja, o topo da pirâmide, não entender que ela precisa dividir o que ela tem de ganho, ela vai pagar o preço para remediar o resultado disso."

O Brasil tem 13,6 milhões de pessoas morando em favelas e seus moradores movimentam R$ 119,8 bilhões por ano. As favelas movimentam um volume de renda maior que 20 das 27 unidades da federação. Os dados são da pesquisa "Economia das Favelas - Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras", desenvolvida pelos institutos Data Favela e Locomotiva e encomendada pela Comunidade Door.

TRABALHO EM CONJUNTO

Mesmo que muita gente, no início, tenha torcido o nariz para o nome, segundo Festa, a 1ª Taça das Favelas de Jundiaí começou com êxito no último dia 12, envolvendo centenas de jovens favelados, entre meninos e meninas, com o sonho de jogar bola. A equipe da CUFA apresentou o campeonato oficialmente à Prefeitura de Jundiaí no início de julho, em uma reunião que teve direito até a embaixadinhas do prefeito Luiz Fernando Machado.

Para o presidente da ONG, essa participação do poder público em iniciativas que buscam dar visibilidade aos talentos e potenciais da favela em um país com uma desigualdade social crônica como o Brasil não é apenas um diferencial, mas um pilar fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas que de fato modifiquem a estrutura do sistema onde muitos têm pouco e poucos têm muito. "Não há nada que a gente queira fazer por meio de trabalhos sociais que não precise de dinheiro, por isso é tão necessária essa troca e essa ponte."

A Prefeitura de Jundiaí concorda, afirmando, por meio de nota, que "considera fundamental a presença de Organizações não Governamentais (ONGs) e Organizações da Sociedade Civil (OSCs) com trabalhos abrangentes e capazes de fortalecer as ações do poder público na busca por soluções para desafios sociais". Ressalta que as políticas que integram a chamada Cidade das Crianças fazem parte desse projeto, uma vez que viabilizam "investimentos intersetoriais nas crianças desde os primeiros anos de vida, com o propósito de ir ao encontro do que já evidenciado mundialmente sobre os impactos positivos de projetos bem-sucedidos de apoio às crianças vulneráveis para ganhos econômicos a longo prazo."

Reforça, ainda, que fomenta "o fortalecimento da saúde e da educação, o fomento ao empreendedorismo e à geração de emprego e renda para a população" enquanto iniciativas que visam ao combate à desigualdade social.

DE CIMA PARA BAIXO

No último dia 14, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, afirmou que pretende abrir novos equipamentos culturais nas favelas do Brasil e construir unidades do CEU, o Centro de Artes e Esportes Unificados. "A arte deve contribuir para pautas centrais que façam o Brasil avançar. Parte desses avanços é a superação de um histórico perverso de desigualdade que persiste há tantos séculos. Os investimentos da cultura não podem perpetuar essa desigualdade", afirmou a ministra durante o 1° Encontro Nacional de Gestores da Cultura.

Os recursos para abrir centros culturais nas favelas devem vir do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento. Na semana anterior, o governo anunciou investimentos de R$ 240 bilhões para os próximos quatro anos, dos quais R$ 1,3 bilhão será destinado ao Ministério da Cultura, o MinC.

A ideia da pasta é construir 250 novos espaços em todas as regiões do Brasil ao custo de R$ 500 milhões. Além disso, R$ 10 milhões devem ser destinados para reformar e concluir as obras de 26 equipamentos culturais. A ideia é que esses centros sejam construídos em áreas de vulnerabilidade socioeconômica. "A cultura se relaciona com a geração de renda, redução de desigualdade, melhor ocupação urbana e adoção de práticas antirracistas", completa Hugo Barreto, diretor-presidente do Instituto Cultural Vale.

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