Opinião

Alicerce

30/03/2023 | Tempo de leitura: 3 min

O menino, sentado no chão, se ajeitou no caixote do cômodo sem mesa e cadeiras. A professora dera como tarefa desenhar sua casa e os seus para levar no dia seguinte. Ficou pensando em como fazer isso, com o corredor ou não da viela.

O pensamento no desenho se embaralhou com a bola que usavam no campinho. "Vai, vai, vai... É gol." Uma das vezes ele conseguiu, contudo era melhor como goleiro. Gostaria que em sua casa tivesse quintal para treinos de futebol.

A respeito do desenho, lembrei-me de um fato acontecido, caso não me engane, em 1972. O quintal da casa em que morávamos era muito grande. Abacateiro, mangueira, goiabeira, pitangueira, bananeiras compunham o cenário. Em um canto "despovoado", nosso pai mandou construir um cômodo de despejo. O moço lhe disse que era especialista em construção. Levantou em um dia a parede, que ficou inclinada. Desistiu da obra ao ser cobrado sobre o alicerce, porque ninguém lhe falara a respeito e nem saberia como fazê-lo. Justificou que construíra muitas casas na encosta dos morros de sua terra, do mesmo jeito que o cômodo. A composição de Luís Antonio e Oldemar Magalhães diz sobre a realidade de tantos que não habitam com dignidade. "Ai, barracão/ Pendurado no morro/ E pedindo socorro/ À cidade a seus pés./ Ai, barracão/ Tua voz eu escuto/ Não te esqueço um minuto/ Porque sei/ Que tu és/ Barracão de zinco/ Tradição do meu país..."

O menino decidiu desenhar apenas a casa e a fez sem chão. Ah, quantas vidas sem alicerce, que se inclinam de um lado para o outro e tantas vezes desmoronam! Ouvira na escola: "Era uma casa muito engraçada/ Não tinha teto/ Não tinha chão/ Ninguém podia entrar nela não/ porque na casa não tinha chão/ Ninguém podia fazer pipi/ porque pinico não tinha ali./ Mas era feita com muito esmero/ na rua dos bobos/ número zero".

Não colocou o piso, mas o telhado sim. A professora lhe perguntou:

"E o chão?"

"Não precisa. Tem o telhado."

Na folha, além da casa, havia o sol pintado de verdes e nuvens marrons. A professora lhe perguntou se era dessa cor que ele via o que colocara. Comentou que ela disse para desenhar e pintar com três cores. Ela emendou: "Indiquei que no mínimo três, mas você poderia buscar uma porção de outros tons".

Mas como? Era ele de vida reduzida em conhecimentos. A mãe vendia recicláveis e o pai se virava como ajudante de pedreiro. Possuía dificuldade em entender as coisas na escola. Em casa ninguém quase conversava, só se tivesse alguém doente na família ou uma morte. Isso sem dizer de seus medos de bala perdida, de noite silenciosa com cheiro de embreagem queimada, de outros meninos com canivete na cintura. Dessa forma, não olhava de lado. Ouvia histórias na rua de aterrorizar.

Sem dúvida, não teria autonomia mental com o propósito de buscar ferramentas para seus próprios sonhos. Mas será que possuía desejos próprios ou repetia a monotonia anêmica dos que o cercavam? Não teria a iniciativa de buscar as outras cores que se espalhavam pela madeira rústica.

Limitou-se a um quadrado sem janelas, porta apenas, triângulo em cima.

A família não estava no desenho. Havia somente um vazio sem lar.

Ele costumava ficar agachado, na entrada do beco, à espera de que viesse alguém carregando um punhado de afeto.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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