Ricos e ilhados

11/01/2023 | Tempo de leitura: 3 min

O último filme do sueco Ruben Östlund, "Triângulo da Tristeza", deu-lhe uma segunda Palma de Ouro em poucos anos. Para muitos, eu incluso, um exagero. Cannes tinha opções melhores. Mas não é filme de se jogar fora. Longe disso. Como outros do diretor, é uma crítica interessante à classe dominante e os espaços que habita.

Desde que Buñuel enclausurou um grupo de burgueses em "O Anjo Exterminador", ou ainda antes, divertimo-nos com comédias que desnudam reis e rainhas, reduzem os abastados à situação-limite em que todos precisam lutar pela própria sobrevivência. "Triângulo" vai por esse caminho: a bordo de um navio de luxo, primeiro conhecemos alguns tipos curiosos - um casal de modelos e influenciadores, idosos donos de uma fábrica de armas, um empresário russo, os trabalhadores da embarcação, seu capitão alcoólatra - e depois somos levados à consequência natural: o naufrágio e os sobreviventes em uma ilha.

O filme é dividido em três partes. A primeira estende a minutos intermináveis uma discussão entre o casal de influenciadores, após o rapaz se queixar da namorada, que não se adiantou para pagar a conta em um restaurante. Na segunda, as situações do barco. Na terceira, a ilha. Em cada uma, Östlund sabe como provocar mal-estar a partir de pequenos efeitos, de repetições que incluem gente vomitando, talheres tremendo e dois homens bêbados - o capitão e o empresário russo - falando de política e conflito de classes no microfone do navio, enquanto seus tripulantes esperam pelo pior. Não tinha como dar certo.

Ainda que pareça tão previsível e esquemático, Östlund vence-nos com cenas fortes e algumas surpresas do texto. Suas personagens são vazias como as de Buñuel no filme de 1962: elas não inspiram nada mais que ojeriza, sem a mínima possibilidade de alguém assumir um gesto heróico. Na luta para sobreviver, retornam a uma relação de grupo não regida mais pela força do dinheiro, mas pela capacidade de conseguir comida.

Na ilha, dos poucos que restam, entre eles o casal de influenciadores, sai uma liderança. Não é nenhum dos ricaços servidos a pratos caros do navio, mas justamente uma das criadas, uma imigrante, uma das pessoas que estavam na parte inferior da embarcação. Ela sabe pescar e fornece alimentos - só o suficiente - aos sobreviventes que pouco ou nada sabem fazer. Ela tem consciência de seu poder e passa a ter benefícios. Reina a seu modo.

Östlund não joga com as caricaturas fáceis do rico malvado e do pobre bondoso. Aprendemos a não gostar de ninguém ao longo dessa experiência pouco digesta. Seus seres humanos são patéticos e estranhamente reais - como são nos ótimos "Força Maior" e "The Square".

Outros dois filmes recentes, produtos de Hollywood, só encontram paralelo com "Triângulo" na proposta de isolar pessoas ricas. A elas são dadas histórias de suspense, frases de efeito, charadas, toda a butique cristalina do cinema certinho e de encerramento "redondo". Falo de "O Menu" e "Glass Onion: Um Mistério Knives Out", nos quais somos apresentados a pessoas ricas e personagens astutas, capazes ainda de nos aliviar, de mostrar que é possível fugir da ilha. Östlund prefere o oposto. A experiência que proporciona é melhor.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; contato em ramaral@jj.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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