CULTURA BRASILEIRA

Qualquer idiota consegue fazer funk, pop e rap, diz maestro

Por Gustavo Zeitel | da Folhapress
| Tempo de leitura: 7 min
Reprodução/Anitta
'Funk, rap e pop são coisas democráticas, porque qualquer idiota pode ficar fazendo isso aí', opinou Medalha.
'Funk, rap e pop são coisas democráticas, porque qualquer idiota pode ficar fazendo isso aí', opinou Medalha.

O telefone toca nos estúdios da TV Cultura em São Paulo. Quem atende é o maestro Julio Medaglia, de 86 anos. "Ih, deve ser da Filarmônica de Berlim", diz um dos músicos ali presentes, para a gargalhada dos cinegrafistas.

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Bem que poderia ter sido verdade. Medaglia já esteve à frente da melhor orquestra do mundo, mas preferiu firmar um compromisso com as vanguardas do Brasil.

Ele esteve no grupo Música Viva, na poesia concreta, no cinema marginal e teve um papel decisivo na fundação da tropicália. Também compôs mais de cem trilhas sonoras para filmes, peças e novelas e foi um dos organizadores dos Festivais da Record. Conhecido pela verve polêmica, ele afirma que a disseminação de festivais, depois dos anos pandêmicos, não agregou nada ao cenário da música brasileira. O maestro, que prepara a autobiografia "Vim, Vi e Regi", sente falta de um espírito de invenção.

"Esses Lollapalooza da vida dão uma música enérgica, cheia de parafernália e gelo seco, para excitar a juventude. É uma música pré-inteligente, é tudo pancadaria, uma pauleira. É sucesso comercial, de uma gente que não tem uma linguagem diferenciada ou propostas de ideias", diz ele. "Funk, rap e pop são coisas democráticas, porque qualquer idiota pode ficar fazendo isso aí."

Nem o megashow de Madonna, que aconteceu em maio na praia de Copacabana, escapa ao olhar crítico do maestro. "Aquilo ali não é música, é só show. A Madonna até abaixou o rabo para a aquela outra cantora, Pabllo Vittar, lamber a bunda dela", afirma Medaglia, com suas sobrancelhas franzidas e o "r", de "rabo", vibrado ao modo dos italianos. Naquela manhã, o maestro regera o último ensaio antes da final do Prelúdio, que acontece neste domingo, no Teatro Cultura Artística.

Criado pelo próprio maestro, o programa está prestes a completar 20 anos no ar, na grade da TV Cultura. Desde o início do ano, a principal emissora pública do país, controlada pela Fundação Padre Anchieta, vive uma crise, com as tentativas de intervenção do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos), além de relatos de demissões e cortes de gastos.

Tanta crise não preocupa o maestro, que exalta os patrocinadores. Segundo ele, não houve nenhum aviso sobre uma possível diminuição de verbas para a atração. "A Cultura é uma emissora pública, mas não é de funcionários públicos", conta ele. "Não é uma emissora usada como relações públicas do governo."

De todo modo, o Prelúdio se tornou um dos principais meios de revelação de talentos para a música de concerto do país. Dele, já participaram o sopranista Bruno Sá e o pianista Cristian Budu, considerado o sucessor de Nelson Freire. Todos os anos a produção recebe milhares de inscrições, vindas de diferentes regiões do país.

A cada episódio, apresentado pela jornalista Roberta Martinelli, os 16 artistas selecionados competem entre si, num esquema eliminatório. Os concorrentes escolhem o repertório, interpretado pela orquestra do programa e acompanhado, no teatro, pelos jurados e pela plateia.

Como de hábito, chegam agora à final quatro músicos. Neste ano, o trompista Rafael Xavier executa o "Concerto para Trompa nº1", de Richard Strauss, o clarinetista Daniel Bressan interpreta o "Concerto para Clarinete", de Mozart, a soprano Pollyana Santana canta "Una Voce poco fa", ária da ópera "O Barbeiro de Sevilha", de Rossini, e Estevão Gomes toca o "Concerto para Piano nº5", de Camille Saint-Saëns.

Como o tempo da música de concerto difere da efemeridade da televisão, as apresentações dos candidatos se limitam a um movimento específico das obras dos compositores.

O vencedor leva uma bolsa para estudar na Academia Franz Lizst, uma das melhores escolas de música do mundo, que fica em Budapeste, na Hungria.

O acaso promoveu o encontro entre Medaglia e a música. Nascido e criado na Lapa, na zona oeste da capital paulista, ele ganhou seu instrumento, o violino, graças à empregada doméstica da família. Tempos depois, Medaglia conheceu o maestro Isaac Karabtchevsky, que o levou para a Escola Livre de Música, criada em 1952 pelo alemão Hans Joachim-Koellreuter, guru de Caetano Veloso e Clara Sverner.

Kollreuter transformou o panorama brasileiro, ao introduzir por aqui o dodecafonismo, que tanto influenciou o jovem Medaglia, sempre à procura de uma arte radical. Já nos anos 1960, o maestro concluiu seus estudos na Universidade de Freiburg, na Alemanha. Participou também dos cursos de verão da escola de Darmstad, onde os principais compositores da época se reuniam em festivais, como se estivessem numa escola.

Ali, eram disseminadas diferentes técnicas de criação musical. Medaglia viu aulas do francês Pierre Boulez, ligado ao serialismo, e do alemão Karlheinz Stockausen, percursor da música eletroacústica. E ainda viu o americano John Cage tocar ao vivo.

"Stockhausen era uma figura mais interessante, porque foi mais ousado", lembra Medaglia. "Ele expandiu a informação musical pelos mais diversos meios." Nesse sentido, o maestro percebeu que sua atividade se daria mais na criação do que na regência de fato.

O conhecimento adquirido na Alemanha ganhou, no Brasil, o sentido do grupo Música Nova, do qual foi um dos signatários, com Damiano Cozella e Rogério Duprat, futuro colega tropicalista. Juntos, eles incorporaram o som do estrangeiro à realidade daqui, numa reação ao histórico nacionalista da nossa música de concerto.

Era um momento de alinhamento entre música e literatura. O próprio manifesto do grupo foi publicado na revista Invenção, do grupo concreto. Medaglia intermediou o contato entre os irmãos Augusto e Haroldo de Campos com Boulez. Os poetas estavam interessados em como relacionar a escrita serial com a poesia concreta.

O maestro acabou concretizando o desejo dos irmãos ao fazer a oralização dos poemas. Embora as gravações tenham se perdido, as partituras estão intactas. No ano de 1967, Caetano Veloso resolveu se aliar à sonoridade radical de Medaglia para fundar a tropicália.

Medaglia fez, então, o arranjo da faixa homônima, do disco "Caetano Veloso", com sons de apitos, timbres sinfônicos e sons eletrônicos. "O arranjo, naquele tempo, era um acompanhamento. Eu mudei isso. Fiz um arranjo que participasse da composição", lembra.

Medaglia se afastaria, anos mais tarde, dos tropicalistas, acreditando que haviam cedido demais à indústria. A exceção, ele diz, foi Tom Zé. O regente ainda emprestaria sua imagem ao cinema marginal do diretor Ivan Cardoso.

Em 1982, ele atuou no filme "O Segredo da Múmia", arrematando o prêmio de melhor ator coadjuvante, pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Também foi laureado em Gramado pela trilha sonora composta para a obra, de um distinto sinfonismo. "A boa trilha não é uma lubrificação do que a imagem e o texto já expressa. É preciso usar o som como elemento de narração", afirma.

Medaglia chegou a dar conselhos para o diretor americano Stanley Kubrick sobre sonoplastia. Para o maestro, é sempre melhor compor música original, adaptando o som ao roteiro. Na televisão, seu trabalho mais conhecido foi a minissérie "Grande Sertão: Veredas", de 1985, da TV Globo.

Na década seguinte, ainda regeria uma montagem referencial da ópera "O Guarani", de Carlos Gomes, na Ópera de Sófia, na Bulgária. A montagem mais recente, realizada no Theatro Municipal de São Paulo, e que será reapresentada no ano que vem, não o entusiasmou.

"Pelo amor de Deus, tem que mandar prender aquele pessoal. Foi uma agressão à ideia do autor. Se eles montarem de novo, me avise que eu chamo a Polícia Federal. Não sei como o busto do Carlos Gomes não caiu lá de cima. Aquilo foi uma palhaçada", diz. São opiniões fortes, mas o regente nega ter se transformado em um conservador. Ao que parece, ele é coerente à sua vida, atada à radicalidade e crítica ao avanço comercial.

"Por que seria um conservador? Me mostre algo novo e eu começo tudo de novo. Eu não sou saudosista. Felizmente, eu participei de uma época que injetou em mim uma inquietação. As melhores orquestras dos Estados Unidos estavam em Hollywood. Era uma indústria que, nos anos 1930, queria ganhar dinheiro, mas tinha dignidade. Quer dizer, é possível ganhar muito dinheiro sem ser um filho da puta."

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Comentários

1 Comentários

  • LUIS ROBERTO ROMERO 10/12/2024
    É o que mais tem, idiota.