NOSSAS LETRAS

De Menininha a Mulher

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 6 min

Ao construir uma narrativa de caráter pessoal onde o aspecto mais significativo é sua inserção como protagonista, um autor ou autora criam autobiografia, gênero literário que tem séculos de existência e remonta no mínimo a Santo Agostinho que escreveu suas Confissões por volta do ano 400 de nossa era. Biografias têm aparecido ao longo do tempo em formatos tão diversos como relatos, poemas, diários, cartas, memórias, até repentes nordestinos. No mundo contemporâneo, novos suportes de comunicação ensejaram variantes e muitas já não têm mais o livro como produto final, e sim publicações em blogs, redes sociais e até vídeos, stories. Mas é no livro de papel que a biografia mais parece encontrar seu caráter documental onde vida e tempo resistem. 

José Lins do Rego em Meus verdes anos; Oswald de Andrade em Sob as ordens de mamãe; Graciliano Ramos em Infância; Helena Morley em Minha vida de menina são autores que registraram em língua portuguesa as histórias de suas próprias vidas. Também em português José Saramago nos mostrou nos cinco Cadernos de Lazarote parte de sua vida, entre 1993 e 1998. A menina judia Anne Frank compôs um Diário como legado de sua amarga experiência de vítima do nazismo. O francês Sartre, em Palavras, revisita seus anos de menino enquanto desvenda as raízes de sua vocação de escritor.

São obras de grande impacto que levam o leitor a compreender as pessoas atrás da autoria, a maneira como elas reagiram às circunstâncias que afetaram seu eu. Mas há que se estar atento ao fato de que uma autobiografia não deve ser analisada apenas da perspectiva individual, pois é gênero que propõe a integração coletiva: ao narrar a sua história o indivíduo partilha com a comunidade onde se encontra inserido as cosmovisões que o dominam, permitindo ao público ter acesso a outras perspectivas de uma realidade comum. Quanto ao tempo que ordena o relato biográfico, nunca é demais lembrar que mesmo sendo desejo do escritor, da escritora apreender a realidade como ela foi, já não lhes será mais possível no momento da escrita, porque as experiências vividas são inapreensíveis. Entretanto, é exatamente nessa brecha do incapturável que um pouco de ficção se estabelece, permitindo a criação de momentos de beleza literária.

Em Franca temos tido a alegria de ver ultimamente vários autores e autoras publicando biografias que nos mostram o esforço e a esperança que toda vida contém, bem como apresentando a cidade que veio se transformando ao logo das décadas até chegar agora ao aniversário de 200 anos. Destaco hoje Maria Conceição Castro da Silva e seu livro relançado neste 2024. Chama-se Marcas, acróstico que lista marcas, angústia, recordações, coragem, alegria, sonhos. Sentimentos e emoções que perpassam toda existência verdadeiramente humana, porque como disse o poeta Francisco Otaviano em seu poema Ilusões da Vida: “Quem passou pela vida em branca nuvem/ e em plácido repouso adormeceu/ Quem não sentiu o frio da desgraça/ Quem passou pela vida e não sofreu/ Foi espectro de homem, e não homem/ Só passou pela vida, não viveu.” 

Sandra Mara Bombicino Jardim escreve na sintética e expressiva orelha do livro Marcas: “Com muita sensibilidade e linguagem poética, Conceição traça um retrato fiel de uma época e com sua Menininha viajamos no tempo e no espaço para com ela compartilhar sua perplexidade, temores, coragem, conquistas e alegrias.” Menininha é Conceição, que aos seis anos, órfã de pai, precisa, por conta da pobreza que é muita, separar-se da mãe e das irmãs para trabalhar em casa de família na cidade, “tornar-se adulta quando mal tinha saído da primeira infância”, como define precisamente Sandra Mara. Aliás, é das cenas mais pungentes o relato da autora ao descrever seu desespero no episódio em que a mãe a entrega à mulher “gorda e bonita, dona Ema, que viera do interior da casa”, no capítulo Separação:

“Nããão!... nããão!... eu num queeerooo!... eu quero í ca minha mãe...! Eu vô ca senhora, né, mãe? Heein? Hein, mãe, eu vô ca senhora, né? (...) Maria, encostada no parapeito do alpendre, nada respondia, nada falava, só olhava para ela com aquele olhar triste e indeciso, enxugando de vez em quando os olhos com a manga do vestido.”

Tessitura de reminiscências dolorosas, essa autobiografia mostra também a força, resiliência, fé religiosa e enorme capacidade de sonhar da autora. Disso dá testemunho ao leitor a saudosa professora Edna Doca Lopes, uma das grandes líderes pela inclusão de deficientes visuais na comunidade. Presidente durante anos da Sociedade Francana de Instrução e Trabalho para Cegos, Edna, como Conceição, deixou de enxergar na adolescência. Mas isso não a fez desistir, antes serviu para inspirar aqueles que foram seus alunos. Para o preâmbulo de Marcas, escreveu:

“É com muita alegria, mas sem muita surpresa, que vejo minha ex-aluna tornar-se escritora, pois conheço-lhe o espírito decidido e ousado. Sua trajetória como estudante, professora, mãe, aposentada e voluntária na Sociedade Francana de Instrução e Trabalho para Cegos foi permeada por dificuldades que não a derrotaram. Lutou muito, esforçou-se para realizar seus sonhos e afinal superou-se.”

Acompanhar a trajetória de Menininha permite ao leitor refletir sobre várias questões de políticas públicas que vêm sendo tratadas de forma letárgica em nosso país. O trabalho infantil é uma delas. A exploração dos pobres pelos abastados, outra. A dificuldade em incluir, uma chaga que permanece aberta. A falta de propostas para moradias dignas, desafio constante. Etc. A verdade é que a vida dos pobres apresenta desde cedo barreiras quase intransponíveis. Em outra cena comovente, que relata o encontro de mãe e filha depois de dois anos de separação, o leitor é apresentado a uma favela dos anos 70, no bairro Santa Cruz:

 “O barraco era feito de pedaços de madeira ligados por latas abertas que catavam no lixo. Lá era uma completa miséria! Não havia sanitário, nem chuveiro, muito menos água encanada. Iam buscar longe, nas minas, por isso os moradores quase não tomavam banho, nem lavavam as roupas. Andavam sempre sujos. Mãe e filha ficaram ali paradas, olhando uma para outra. Maria não ousava tomar sua filha nos braços. Talvez porque julgasse que ela era feliz e que não gostasse mais dela, pois agora vivia em um mundo diferente. Andava limpa, calçada e bem-vestida.”

 É preciso dizer que a autora não se limitou a resgatar em seu livro apenas a realidade dolorosa. Desde sempre dotada de grande capacidade de luta, buscou em instâncias diversas os recursos emocionais que lhe permitiram driblar os percalços que a vida ia lhe impondo. Tais recursos, aliados à sua vocação para a palavra escrita, formaram sua grande riqueza, permitiram-lhe trilhar caminhos permeados pela esperança e a levaram à superação de inúmeros obstáculos, o maior deles a perda da visão.

 Frequentadora das reuniões da AFL, como acadêmica que se tornou há dois anos, Conceição tem oferecido aos confrades e confreiras oportunidades de reflexão. Serena, introspectiva mas gentil, na última reunião realizada em outubro leu em braile uma crônica do mais recente livro de Perpétua Amorim, Palavras Azuis, o que ensejou não apenas admiração de todos como também respeito e ternura pelo ser humano em que ela se tornou.

Sua trajetória de menininha a grande mulher é contada em Marcas com a delicadeza das almas poéticas e por isso sua autobiografia comove os leitores. A grandeza humana é sempre inspiradora.  

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.     

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