NOSSAS LETRAS

Rotina e Ruptura no Trampo

Por Baltazar Gonçalves | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 3 min

O funcionário eficiente nunca faltou, foi trabalhar com o pé quebrado e quando pegou dengue, chega cedo e sai mais tarde, puxa saco na medida certa pra não babar nos ovos, a empresa paga bônus para a eficiência e todos na reprodução dos costumes concordam, num pacto silencioso de inveja velada e prepotência competitiva: manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Outro dia o funcionário eficiente perdeu as chaves do carro no shopping, o chaveiro deu trabalho chegando quando a última loja fechava, ele então perdeu o rumo de casa e deu voltas nos bairros da periferia da cidade onde já tinha morado quando ainda não era eficiente. Chegou em casa quase madrugada sem sono, piscando alerta de faróis acessos como os fuscas que tiveram antes de ser funcionário. Não tinha jantado porque economizou no shopping, tinha janta em casa, mas não tinha mais fome. Fritou na cama, banho frio. Já era quase dourado no céu da madrugada quando o funcionário eficiente teve a brilhante ideia de tomar mais 20 gostas de Rivotril. Ninguém sabe que ele é epilético, por favor não espalhem. Somado à dose cavalar de 800 mg de Quetiapina diária, o Rivotril bateu separando sua alma do corpo, ele capotou por não sabemos quantos dias num mergulho quase morte aprazível. Dormiu como se fosse justo.

Se acordou, era samambaia renovada. Fez seu café de rotina comum hidratando-se de cafeína e ganhou a hora do trabalho para chegar na fábrica das competências inúteis na prática.

Quando chegou na repartição, endorfinado e alegre como só podem os cães, foi recebido com espanto: o que faz aqui, foi dado por morto!

É curiosa a sensação de sentir nos intestinos a frieza da eficiência, o funcionário sorriu amarelinho pintado de azul, disfarçadamente consultou o calendário no celular e quase desmaiou numa onda de ressaca quetinovotril constatando que perdera 7 dias de vida dormindo. O rebuliço na repartição logo foi abafado pelo choro de uma faxineira que acabava de perder o tio, tão triste ouvir o desespero de quem é eficiente de verdade por não ter mais que a força do corpo para vender em troca de trabalho.

Claro que foi apenas um momento de ruptura no tecido há muito corrompido das relações interpessoais em ambiente de trabalho, não é possível ser feliz dentro do sistema se cada um não produzir pelo menos sua parte; mais importante ainda é que cada um fique no seu quadrado que, ao que parece, nesses tempos de clichê líquido, são bolhas.

Desse quadrado esquadro enquadramento foco, as linhas emaranhadas que leu caso tenha chegado até aqui, suspeito ser melhor morrer por sete dias e ressuscitar com cara de pinico do que mijar fora da bacia, esse cheiro de mijo não é real, mas entranhou e por isso o descaso em fazer a lição de casa lavando o bidê.

MORAL DA HISTÓRIA (porque isso aqui é invenção de quem trocou "eficiência" por "ócio, tempo livre"): se cuidem, não abusem de drogas lícitas, mesmo receitadas, a menos que sua instabilidade emocional beirar a insanidade da pura eficiência.

Baltazar Gonçalves é formado em História, professor, fotógrafo e escritor membro da Academia Francana de Letras

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