NOSSAS LETRAS

Maneiras de olhar o mundo

Cada um de nós olha de maneira diversa o mundo, outros humanos, as coisas, as obras de arte. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 04/05/2024 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN/Sampi Franca

É verdade acaciana que há muitas formas de ver o mundo. Vamos às óbvias. A física, competência do órgão extraordinário que é o olho: “Vejo uma criança.” A racional, que permite analisar o que se enxerga: “É menino, tem pele morena e cabelos cacheados.” A contemplativa, quando o sujeito vai além daquilo que o objeto aparenta: “Brincando, o menino constrói sua infância.” A lírica, apanágio dos pequenos que ensaiam as primeiras palavras e dos poetas que conseguem manter a criança dentro de si, ambos encantados com o mundo novo que descobrem e precisam nomear: “Tendo esquecido o nome da palmilha, o menino que começava a ampliar o vocabulário a chamou de lençol-do-sapato”.

O olhar apenas físico é limitado, enxerga só o que é aparente; é o ver por ver. O racional é o da ciência, para quem tudo tem de ser provado; é o ver para crer. O contemplativo pertence às regiões da alma; é o ver além. O lírico entra em comunhão com o que desvela; é o ver criativo. No cotidiano de nossas vidas exercitamos esses olhares e dezenas de outros, às vezes até de embrulhada. O físico é o mais solicitado; o racional depende de circunstâncias; o contemplativo é típico dos que buscam transcendência; o lírico se faz mais constante no coração dos artistas.

Estes, aliás, são seres para quem o ato de olhar é sempre instigante, sejam eles pintores, desenhistas, escultores, fotógrafos, cineastas, escritores... O ficcionista José Saramago escreveu: “Olhar, ver e reparar são maneiras distintas de usar o órgão da visão. Só o reparar, no entanto, pode chegar a uma visão plena.”  Uma ensaista francesa, Anaïs Nin, depois de conhecer a obra de Freud e aderir à psicanálise, cunhou frase reproduzida em dezenas de idiomas: “Não vemos as coisas como são, mas como somos”. Essas palavras ecoam outras do poeta Fernando Pessoa: “O que vemos não é o que vemos, senão o que somos.” Ou seja, muitas vezes projetamos nas coisas externas o que move nosso mundo interno. O povo brasileiro, sábio nas suas observações, tem um provérbio curioso que toca essa tecla: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”. Ver sob a lente das emoções, contrariando algumas vezes até a lógica, revela como o olhar é suscetível. Quando afetado pelos sentimentos, pode se iludir.

A realidade é única, mas a percepção humana varia a todo momento. Cada um de nós olha de maneira diversa o mundo, outros humanos, as coisas, as obras de arte. Cada um vê de acordo com as experiências que traz consigo. Por isso é de bom senso considerar o olhar do outro, mesmo quando ele parece diametralmente oposto ao nosso. Vivemos uma época de muita polarização em grande parte do mundo, com humanos agarrados ferreamente a seus pontos-de-vista, implacáveis em relação a maneiras de ver que não sejam iguais às suas. Ver sem levar em conta o beneplácito da dúvida pode nos limitar: os filósofos céticos já sabiam disso há mais de dois mil anos.

A respeito de olhares, conto aqui duas experiências pessoais bem prosaicas que me fizeram refletir.

Primeira. Em dezembro passado, tendo recebido para um lanche minha irmã e sobrinhas, a mais velha delas, Tatiana, quis no final lavar a louça: “Tia, fique aqui na sala conversando com minha mãe que vou lavar os pratos.” Fiquei. Quando mais tarde fui à cozinha, vi os pratos no escorredor colocados de forma perfeita. Foi um espanto para mim: percebi naquele momento que há dez anos eu os colocava ao contrário. Era por isso ficavam mal encaixados, o que muito me irritava. Uma década sem entender que havia outra forma, e muito melhor, de fazer aquilo!

Segunda. Há alguns dias, um técnico esteve em casa para higienizar o ar-condicionado do meu escritório. Deixei-o trabalhando e ao final de meia hora tudo estava pronto. Ele me chamou, fui ver o serviço e, antes mesmo de olhar no alto o aparelho, notei que para alcançá-lo e colocar uma escada o rapaz havia deslocado um sofá por uns dez centímetros, girando-o levemente. Não é que isso havia conferido ao espaço um jeito novo e mais harmonioso? Nunca me ocorrera fazer o que ele fez, provavelmente sem pensar em estética, apenas recolocando o móvel segundo a sua perspectiva. Achei fantástico.

Desde então tenho pensado com mais intensidade na importância de não manter o olhar rígido ou viciado. Outros olhares podem compor com o nosso, podem ser melhores que o nosso. As domésticas situações citadas são da ordem do micro. Mas imagino que em termos de macro, as grandes intolerâncias deste século – do bullying na escola à guerra entre nações – denotam a falta de condição para entender que olhares diferentes não são necessariamente nocivos ou inimigos e podem agregar qualidade se nos dispusermos a reconhecer e aceitar a diversidade humana como uma riqueza.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras

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