NOSSAS LETRAS

Fio de barba

Ser do tempo do 'fio do bigode' significou pertencer a uma sociedade onde honrar a palavra implicava alto valor pessoal. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 06/04/2024 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN/Sampi Franca

A expressão “fio de barba”, que aparece em alguns idiomas mas tem origem controversa, é bastante antiga. Como existe outra, “fio de bigode”, com o mesmo sentido, para filólogos e versados em etimologia esta pode ser derivação da frase germânica “Bi Gott”, usada em juramentos. Traduzida para o português tornou-se “Por Deus”. “Bi Gott”: Bigode. Será?

A gente pode ter dúvidas dessa aproximação auditiva e semântica. Mas não do fato de que existiu em tempo bastante remoto onde para garantir a palavra empenhada bastava um fio da própria barba ou bigode. Este fio selava entre homens um trato inquebrantável. É de se crer que tenha precedido o lacre e a rubrica, coisas de antanho.

Ser do tempo do “fio do bigode” significou pertencer a uma sociedade onde honrar a palavra implicava alto valor pessoal. Hoje, diante do mercado avassalador, implacável e cruel, que ignora valores éticos e morais, essa história soa curiosa. Ao mesmo tempo, resgatá-la pode nos reenviar a um mundo de maiores certeza e confiança. É o que fez o francano Roberto Nunes Rocha, advogado e professor, no seu livro recém-lançado, “Fio de Barba- no tempo em que palavra era documento.” Filho de dois renomados e saudosos professores- Pedro Nunes Rocha e Maria Sílvia Cintra Nunes Rocha, a dona Branca, que marcaram gerações no então IEETC nos anos 60, o autor construiu seu livro usando elementos reais e ficcionais.

Tanto quanto contar uma história protagonizada por homens cuja palavra equivalia a uma palavra juramentada, Rocha recria um universo rural com acurado senso de observação de humanos, recortes da natureza e costumes da vida do Brasil profundo antes que o êxodo dos anos 50 começasse a exportar para áreas urbanas milhões de lavradores que se tornariam operários.

São muitos os escritores (inclusive francanos) seduzidos por este tema, seja porque viveram as agruras daquela época de transformação do país, seja porque ouviram de seus pais parte desta saga. Mas ao contrário dos que mostraram pela via da ficção o difícil trânsito do campo para a cidade, Rocha fixou seu relato na zona rural, marcada pela presença de homens valentes, na luta com a terra, os animais, as plantações e contra homens violentos, embora nas últimas cenas o autor coloque seu vitorioso protagonista num centro de poder, o legislativo, de onde ele acaba se afastando:

“Devido ao grande respeito e liderança que exercia o Juca no antigo Distrito e agora Comarca de Pedregulho, logo ingressou na política. Exerceu a vereança por mandatos consecutivos mas resolveu se afastar, não dar continuidade à atividade política, pois seus negócios e sua família exigiam, cada vez mais, a sua presença.”

 E emendando ideias, complementa imediatamente:

“Desfrutava de grandes alegrias, sempre visitava e era visitado por muitos amigos das famílias Ferreira, Bisco, Toledo, Feitas, Padilha, Peliciari, Rios, Paranhos, Alves, Diniz, Caparelli, Biazoli, Rodrigues, Quercia, Peracini e tantos outros. Ele e mais três amigos formavam o quarteto dos Jucas.

O Juca Barba, assim cognominado porque “era homem de uma só palavra”, é o personagem principal da história que lembra um desses mostrados em novelas de televisão que desenvolvem o mesmo tema. Em 205 páginas, um narrador onisciente mostra a vida do fazendeiro desde a juventude até a velhice, pelejando para manter sua terra produzindo, o rebanho crescendo, a família unida e a palavra respeitada, fosse em vultosos negócios envolvendo gado, fosse em fatos comezinhos do cotidiano.

A discreta presença feminina (no caso representada por Quinca, mulher de Juca) naqueles rincões desvela a realidade de meados do século passado.  O respeito aos mais velhos, considerados por sua sabedoria e dignidade, contrasta fortemente com o tratamento dispensado aos idosos na contemporaneidade. Os negócios contratados à base do fio da barba parecem excêntricos e até bizarros, mas têm um sentido mais amplo e profundo, que é o da ética.

Nesse universo marcado pelo trabalho constante e pesado irrompem dois forasteiros de um lugar distante, o sul do País. Violentos e temidos, eles desequilibram a narrativa com atos de agressão e um deles acaba assassinado.  Ambos conferem movimento à história forçando deslocamentos físicos e preocupando as mentes do protagonista, de seus familiares e amigos. Costurando esses fatos, há pausas para descrever o reencontro emotivo de dois homens ligados por gesto de generosidade no passado; uma singela festa de casamento; a caçada de paca com a ajuda de cães. E até um boiadeiro a cavalo, retratado de forma admirável:

“O velho montava um cavalo alazão de crina amarelada, tosada e aparada no estilo meia lua. Era um cavalo de porte bem grande, fazia figura. Por cima do arreio, o pelego e a baldrana que tornavam macia a montaria. A cabeçada e o peitoral eram de argolas Corneta, interligadas por charruas de couro cru bem untadas com sebo para não ressecarem. Assim também o laço de couro de veado mateiro, que estava com as rodilhas espalhadas pela anca e garupa do macho. Atrás do arreio, por cima da garupa, o porta capa com duas tiras de couro afiveladas. De cada lado do cavalo, o alforge, que guardava dinheiro, troca de roupas e outros objetos pessoais. Amarrada de comprido, com o cano para o lado da garupa, e a coronha para o lado do pescoço, a velha carabina em sua proteção de couro(...)”.

Construindo a vida do personagem principal, de sua família e amigos, o escritor se permitiu, no terço final do livro, alguns rasgos ousados. Como, por exemplo, abrir frestas para a vida política no Brasil que ainda tinha como capital o Rio de Janeiro e como presidente Getúlio Vargas, com quem o protagonista, por engenho e arte do criador, mantém conversa depois de um encontro fortuito com Gregório Fortunato, o desatinado guarda-costas do presidente. 

A leitura de “Fio de Barba” me fez pensar nos antigos contadores de histórias que ao final de suas jornadas, chegando a noite, depois da lida exaustiva, mas reconfortados com banho e comida, se reuniam para falar de acontecimentos do dia e de outros, do passado distante, ao mesmo tempo em que sonhavam o futuro.  Essa tradição de oralidade, que escritores contemporâneos retomam pela via da escrita, costuma explicar a história de um indivíduo, seu pertencimento familiar, a inserção no grupo social.

No caso do livro em foco, o autor confere ênfase à ética do trabalho de gerações que contribuíram para o desenvolvimento da região paulista onde repousa a saga, ou seja, Pedregulho e adjacências.  Ao fazê-lo, mesclando à ficção dados documentados, como fotos, certidões e outros documentos, convida o leitor a refletir sobre identidade e memória, sempre ligadas de forma indissociável.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

1 COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.

  • ROBERTO NUNES ROCHA
    06/04/2024
    Após degustar, palavra por palavra, do artigo de Sonia Machiavelli a respeito do meu livro Fio de barba, senti-me honrado pela bondade ali estampada. O respeito, a importância e o prestígio desta nobre representante da Literatura Brasileira, me impelem registrar minha profunda gratidão. Obrigado Sonia!