NOSSAS LETRAS

Há oito séculos

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 3 min

Antes de 1223 já existiam presépios nos países do centro e norte da Europa. Deles se têm notícias em textos de escritores do período e em peças ainda preservadas e expostas em museus específicos de algumas cidades. Mas naquele ano um jovem chamado Francisco, que havia feito voto de pobreza sendo nobre e rico, e criado uma ordem religiosa que até hoje se mantém fiel a seus princípios, resolveu inovar com um presépio onde seres vivos substituíam estátuas.

Convidou para esse teatro os moradores que viviam ao redor de Greccio, cidade distante 70 km de sua terra natal, Assis; arrebanhou alguns animais; buscou uma gruta para compor o estábulo. Assim encenava pela primeira vez o que haviam relatado Lucas e Mateus; de forma dramatizada mostrava o nascimento de Jesus em Belém, localizada a dez quilômetros ao Sul de Jerusalém, no território conhecido então por Judeia e hoje chamado Cisjordânia. Na geografia grafada na Bíblia estes espaços físicos tinham nomes como Canaã, Judeia, Filisteia e outros.

Naquela região, a maioria das pessoas dependia da agricultura para sustento, vivendo em povoados e cultivando em média sete hectares de terra para plantio de grãos, oliveiras, legumes e vinhas. A apicultura e a pesca eram outras atividades importantes. Ofícios como os dos pastores, ferreiros, oleiros, tecelões, carpinteiros, marceneiros, pedreiros e curtidores eram transmitidos de pai para filho e tinham um papel essencial na vida comunitária. As classes variavam desde a nobreza sacerdotal e altos funcionários, latifundiários e grandes comerciantes, até pequenos proprietários rurais, artesãos e negociantes, escravos e diaristas que trabalhavam em terras alheias. Essas representações de estratos sociais dos tempos de Jesus povoam o Novo Evangelho e aparecem em alguns presépios, como os de Nápoles, tornados obras de arte pelo seu tamanho e pelo perfeccionismo ao retratar uma aldeia inteira.

Mas Franciso de Assis quis mais que um cenário estático; ele desejou uma cena essencial com um casal de verdade, um bebê remexendo na manjedoura, pastores com seus cajados e ovelhas, pessoas tocando instrumentos musicais, crianças cantando. Tudo extremamente simples, como tinha sido na realidade.  O propósito de Francisco foi imprimir dinamismo às verdades cristãs, transportando-as para a vida comum, num tempo em que a esmagadora maioria da população era analfabeta e a missa rezada em latim, língua morta, o que continuou até meados do século XX. A novidade de seu presépio parece ter mobilizado na época a alma dos cristãos, levando-os a refletir com mais sentimento sobre a vinda do Menino; a presença de Maria, sua mãe; de José, o carpinteiro; dos pastores; dos Reis Magos chegados de longe, trazidos pela boa nova anunciada por uma estrela. Ao colocar gente pobre de carne e osso e sangue e gestos e simplicidade no lugar de ricas imagens artesanais, Francisco infundiu calor humano ao que parecia então apenas espetáculo para os olhos. Tocou o coração.

Se cristãos nos dias de hoje, estamos necessitando refletir sobre o mundo de imagens que nos saturam nesta época pós-moderna de tempos líquidos, e ao menos tentar resgatar a mensagem genuína do presépio nos moldes criados pelo primeiro franciscano há oitenta séculos. E a partir daí conseguir tempo e criar condições para nos conectar com o próximo de forma verdadeira e fraterna.

Recentemente o papa Francisco voltou ao tema que sempre lhe foi caro, e o colocou no livro “Meu Presépio”, onde fala ao leitor sobre sua relação pessoal com o lugar: “O presépio é um Evangelho vivo, que transborda das páginas da Sagrada Escritura. Ao mesmo tempo que contemplamos a representação do nascimento de Jesus, somos convidados a pôr-nos espiritualmente a caminho para ir ao seu encontro, acolhendo-o em nossa vida.”

Sobre essa cena de beleza pungente, mesmo para os que não são religiosos, escreveu recentemente Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo: “A liturgia católica do Natal é repleta de textos significativos, fruto da contemplação milenar deste mistério inefável: Deus infinito entra na finitude de nosso mundo e do tempo, da fragilidade humana, e estende a mão a todos, oferecendo seu amor e sua vida.”

Há os que a aceitam. Os que a rejeitam. Os que a ignoram. Mas ele continua lá, de braços abertos, no seu infinito tempo.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras

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