NOSSAS LETRAS

Os puritanos e a letra escarlate

Se buscarmos hoje nos dicionários alguns sinônimos para puritano, vamos encontrar pelo menos cinco em nosso idioma. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 11/02/2023 | Tempo de leitura: 6 min
Especial para o GCN

Se buscarmos hoje nos dicionários alguns sinônimos para puritano, vamos encontrar pelo menos cinco em nosso idioma: rígido, intolerante, intransigente, rigoroso, severo. O termo, de origem inglesa, veio se modificando pouco através de cinco séculos e ainda guarda os sentidos moralistas de sua origem religiosa. Na linha do tempo ele surge depois da Reforma Protestante liderada pelo monge alemão Lutero e o teólogo suíço Calvino, e do rompimento do rei inglês Henrique VIII com Roma, fundando a Igreja Anglicana porque o Papa não autorizara seu divórcio de Catarina de Aragão. Lutero, Calvino e Henrique VIII foram contemporâneos e viveram até meados do século XVI.

Nesse caldeirão onde fervores religiosos e interesses pessoais entraram em ebulição, um novo elemento surpreendeu. Entre os católicos que continuaram seguindo o Papa, os anglicanos que permaneceram submissos ao rei e os protestantes mais radicais na ruptura, emergiram os puritanos, membros de um movimento tornado conhecido como puritanismo.

Os puritanos acreditavam que a Igreja da Inglaterra era muito semelhante à Igreja Católica Romana e portanto deveria eliminar cerimônias e práticas que haviam sido criadas pelo rei, auto proclamado chefe da nova igreja. Assim, entre o cerco da Igreja e o da Coroa, mais a opção protestante, grupos de puritanos surgiram, cresceram e no começo do século XVII, com a descoberta do Novo Mundo, migraram com suas famílias para as colônias do Novo Mundo, estabelecendo as bases para nova ordem religiosa, intelectual e social na Nova Inglaterra.

Um dos primeiros núcleos foi a colônia britânica de Salém, rachada por ataques indígenas e atormentada por pequenos crimes e disputa de terras. Ali os puritanos estabeleceram um governo onde a igreja comandava tudo. É este povoado, onde o romancista Hawthorne Nathaniel nasceu em 1804, que ambienta os acontecimentos do romance “A Letra Escarlate”, escrito em 1850. A mesma cidade, porto incrustado no condado de Massachussets, seria escolhida no século XX pelo dramaturgo Arthur Miller para cenário de sua peça “As Bruxas de Salém”, levada posteriormente ao cinema. No palco e na tela conta-se a história de uma histeria coletiva, com mulheres inocentes condenadas à forca por serem consideradas feiticeiras. A literatura apenas buscou elementos na vida real, pois o caso verídico aconteceu entre os anos de 1693 e 1694.

Não deve soar então como fortuito o fato de Nathaniel Hawthorne, escrevendo quase duzentos anos depois dos acontecimentos, mas cem anos antes de Miller, ter colocado uma bruxa como coadjuvante no romance que atraiu minha atenção pelo título desde que  vi a capa pela primeira vez: “A Letra Escarlate”. Não sei por qual motivo nunca conseguia tê-lo em mãos. Até que numa recente viagem descobri único exemplar nas prateleiras de uma livraria de aeroporto. Parece que ele me acenava. Eu o comprei, comecei a ler no avião, mas senti que era pesado demais para uns dias de férias programadas exatamente para descansar a mente. Deixei para continuar na volta.

Confesso que fiquei muito afetada pela história de Hester Pryme, sua filhinha Pearl, o pastor Arthur Dimmesdale, o velho Roger Chillingworth e, afinal, a vida de todo aquele agrupamento de puritanos oriundos da Inglaterra, pioneiros em busca de nova vida. Eles me fizeram lembrar uma frase do jornalista Mencken, para quem puritanos eram “pessoas que suspeitavam de todo lugar onde alguém estivesse se divertindo”, e outra do sociólogo Max Weber, que reconheceu “a força do puritanismo como maneira de lidar com os requisitos contraditórios da ética cristã, em um mundo à beira da modernidade”. Na verdade, nada é tão simples ou raso como parece, em se tratando de humanos e sociedades.

Sem dar spoiler, resumo a trama em poucas linhas. Na comunidade puritana de Salém, a jovem Hester, tendo engravidado na ausência do marido que estava retido em Londres, é julgada (depois de dar à luz na prisão) e condenada a carregar pelo resto de sua vida a letra A (de Adúltera), bordada em vermelho na frente da sua roupa.

Uma das primeiras protagonistas a fugir do estereótipo romântico, Hester é construída pelo autor como mulher corajosa, capaz de enfrentar seu destino com brio e garra, sem se submeter a quem quer que seja, e indiferente aos que a evitam e desprezam. Um dilema moral não lhe permite revelar nem sob tortura o nome do pai de sua filha. Muito menos apontar o marido que surge de repente em Salém, no instante em que o juiz lê a sentença para a ré, exposta ao público no patíbulo, a filha apertada contra o peito. Com talento para a costura, Hester ganhará seu sustento e o da filha nessa função. Viverá afastada do povoado, numa choupana abandonada, carregando um estigma que a “queima intimamente” como diz.

Ao relatar os sofrimentos inerentes a tal situação, o narrador ora critica o puritanismo, ora reflete sobre eternas questões humanas, a partir de situações específicas que ensejam seu comentário. É o que acontece, por exemplo, quando se expressa diante da mudança de comportamento de um personagem: “Exceto quando o egoísmo entra em jogo, a natureza humana tem a seu crédito a tendência de antes amar do que odiar. Mesmo o ódio tende a transformar-se em amor, por um processo lento e gradual, a não ser que a transformação seja impedida por uma nova irritação do primeiro sentimento de hostilidade.” Mas o que realiza de melhor é construir personagem feminina que rompe com os padrões da época.

Detentor de um estilo repleto de imagens plásticas, que levaram a modernas análises psicanalíticas; defensor de uma linguagem simbolista e fantástica; inclinado à alegoria e à mitologia, este escritor faz constantes indagações à alma e ao inconsciente e suas explorações são perturbadoras. De forma intensa e fascinante, mergulha nos mistérios e horrores da natureza humana ao mostrar seres a quem a cultura, as imposições desumanas e as circunstâncias tornam infelizes. Vítimas da moral puritana, os protagonistas de “A Letra Escarlate” são exemplo, ao reverso, de como o exercício da liberdade de pensar e sentir deve ser cotidianamente apurado em busca de uma existência de autonomia, sem amarras que destruam nossa verdadeira vocação para a Vida.

A edição que tenho em mãos é da Nova Fronteira e faz parte da coleção Mistério e Suspense. A excelente tradução é de Antônio Pinto de Carvalho. Na orelha, o leitor é informado de que o romance foi aclamado como um dos grandes em língua inglesa por escritores como Fernando Pessoa, Henry James e Herman Melville- este, grande amigo de Nathaniel Hawthorne. 

Ler um romance de 240 páginas como “A Letra Escarlate” pode abrir um leque de sentimentos e sensações; conhecimentos histórico e geográfico; crítica a modelos sociais; reflexões sobre trajetórias de vida; relatividade do tempo.  E, o que considero de muita importância, pode ser a oportunidade para tentar compreender a diversidade dos seres e o lento avanço das mentalidades no mundo.  Isso tudo reunido não se encontra nas redes sociais.

Post scriptum. 
1.Em 21 estados dos EUA o adultério ainda é crime. As penas variam de uma multa de dez dólares em Maryland até quatro anos de prisão no Michigan. Em Massachussets, onde se encontra Salém, a última condenação por adultério ocorreu em 1983.
2.No Brasil o adultério, que só condenava a mulher e nunca o homem, deixou de ser crime depois da sanção da lei 11.106, de 28 de março de 2005, que revogou o artigo 240 do CP. Faz apenas dezoito anos.
3. Os puritanos não foram extintos como os dinossauros; ainda estão esparramados por toda a Terra.

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.