OPINIÃO

Viuvez

'Arráncame la vida', romance da mexicana Ángeles Mastretta lançado no México em 1985, virou filme em 2008, com roteiro de Roberto Sneider. Leia o artigo de Lúcia Brigagão.

Por Lúcia Brigagão | 19/03/2022 | Tempo de leitura: 3 min
especial para o GCN

Arráncame la vida, romance da mexicana Ángeles Mastretta lançado no México em 1985, virou filme em 2008, com roteiro de Roberto Sneider.  Ambos contam, com maestria, a transformação e passagem de Catalina, de garotinha a mulher madura. Jovem curiosa, inteligente, sensível, bastante atrevida e audaciosa para os padrões da época de sua mocidade encontra Andrès Ascencio, militar impiedoso, arrogante, violento com seus inimigos políticos, hábil em manipular pessoas e eleitores com promessas populescas, força bruta e absoluta falta de pudor. Catalina, depois de muito assediada por Andrès e estimulada pelas comadres, decide se casar com ele. Diferença de idade grande, menor, porém, que a indiferença que Catalina desenvolve por ele. Têm filhos e um dia ela se apaixona por guapo rapaz, maestro de orquestra.

Nesse ínterim, Ascencio tenta dormir com todas as mulheres do mundo. Um dia, Ascencio morre. Catalina se vê viúva, rica, livre e jovem. Sabia que enfrentaria muitos problemas sociais, com as comadres do lugar que a vigiariam sem trégua; com a família que não reconhecia nela, por ser mulher, qualquer habilidade para administrar a fortuna do recém falecido marido. E chorava, não pelo marido, antes pelo medo do futuro. Na cerimônia do velório, senhora bem mais velha e experiente, se aproxima dela e lhe diz, bem baixinho: “Não chore. Você é uma felizarda. Ele só judiou de você, maltratou-a moral e fisicamente, era um péssimo marido, era apenas um provedor nababesco. Agora, Catalina, você está livre. Já cumpriu sua missão social: casou-se, teve filhos. Ele morreu e você está livre! Livre para viajar, para não dar explicações a quem quer que seja, você não deve nada a ninguém. Deixa passar o velório; enterre esse traste e depois desfrute de sua juventude, do seu dinheiro e, principalmente, da sua liberdade!”.

Minha mãe ficou viúva com 49 anos. Volta e meia arranjávamos prospects para ela. Alegávamos que ela ainda era bastante jovem, saudável, que tinha muito para conhecer no mundo, que não podíamos dar-lhe toda a atenção que merecia. Ela ria muito e tinha contra-argumento irrefutável: dormira por trinta anos com o homem mais bonito do mundo. Acordava, dizia, e via aquele deus grego. “Onde vou achar outro igual?... Virar na cama e encarar careta ao invés de olhos azuis, boca perfeita, nariz afilado? Nem pensar!”

Outra amiga se casou não uma, mas duas vezes. Viúva ainda relativamente jovem, sozinha e cheia de vida, muito sociável, alguns anos depois da morte do primeiro, casou-se novamente de vestido lindo, na igreja com música, buquê e festa. A família não aprovou totalmente, mas ela passou a ter companhia para sair, divertir-se, viajar e agora tinha companhia para o café da manhã, ria-se.

Três depoimentos assaz interessantes, mas não me servem.  Fui feliz, ninguém me fará o discurso de Catalina. Não sou jovem como mamãe, quando enviuvou. E não sinto absolutamente falta de companhia: amigos, filhos, netos preenchem minha vida.

Fiquei viúva inesperadamente há cinco meses. Inesperadamente porque havia combinado com ele de morrermos juntos na ponte do rio Sapucaí, quando estivéssemos voltando de alguma viagem inesquecível, num acidente de carro. Rapidamente, sem outras vítimas. Uma curva acentuada, pequena imperícia e pronto! Acabaríamos ali. Iríamos juntos para outra dimensão. Entretanto o destino segue direção diferente do nosso desejo. Ele se foi e eu preciso seguir aprendendo. Aprender a viver de forma que não imaginava.  Principalmente aprender a não me sufocar e ter o coração apertado toda vez que chego em casa, acendo as luzes, abro a porta e a solidão me recebe.

Lúcia Helena Maniglia Brigagão é publicitária e escritora.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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