GAZETILHA

Missão fracassada

Jean não era bandido. Não estava assaltando uma padaria, não violentou ninguém, não se encontrava num beco traficando drogas. Tinha esquizofrenia, condição que ninguém escolhe ou procura. Esquizofrênicos como ele têm episódios psicóticos frequentes, usualmente caracterizados por alucinações, com direito a ouvir vozes, delírios e confusão mental.

Por Corrêa Neves Jr. | 24/10/2021 | Tempo de leitura: 6 min
Editor do GCN

“Não há outro pecado além da estupidez”
Oscar Wilde
, escritor e dramaturgo irlandês

Não faço parte do grupo de brasileiros que defende a extinção da Polícia Militar. Jamais acreditei que policiamento ostensivo pode ser feito sem armas. Nem por um segundo imagino que a vida de um soldado que sai de sua casa, todos os dias, para uma rotina que inclui, invariavelmente, confronto com aqueles que insistem em viver à margem das leis, seja fácil, ainda mais considerado o soldo baixo e as condições de trabalho longe das ideais. Nunca sustentei que policiais acuados por tiros de bandidos devam reagir com flores, nem acho excesso ou abuso quando marginais morrem nestas circunstâncias. Também não acho que PMs têm prazer em matar.

Nem por isso considero normal ou minimamente aceitável o que ocorreu na madrugada da última quinta-feira, 21 de outubro, quando um jovem esquizofrênico, em pleno surto, acabou morto por um policial militar no jardim São Domingos. A ocorrência, tristíssima, soma-se a algumas outras que, nos últimos meses, têm colocado em xeque o histórico e a reputação de excelentes serviços prestados pela Polícia Militar em Franca.

Jean Aparecido Santos da Silva, 24 anos, foi a vítima da vez. Perdeu a vida assassinado com quatro tiros desferidos a queima-roupa pelo cabo PM Maicon Richard Gonçalves, lotado no 15º. BPMI (Batalhão da Polícia Militar do Interior), sediado em Franca e responsável pelo patrulhamento das 23 cidades que compõem a região. Eu não conhecia Jean da Silva. Também pouco sei sobre o cabo Maicon Richard. Do que tenho a mais absoluta convicção é que jamais a ocorrência para qual a PM foi acionada naquela madrugada poderia ter o desfecho que teve. Não se trata de conclusão precipitada, de pré-julgamento, de ignorar a realidade das ruas. É só humanidade mesmo. Daquele tipo mais elementar, que não deveria faltar a ninguém.

Jean era um doente. Tinha esquizofrenia, condição que ninguém escolhe ou procura. Esquizofrênicos como ele têm episódios psicóticos frequentes, usualmente caracterizados por alucinações, com direito a ouvir vozes, delírios e confusão mental. Quando em surto, não podem sequer ser responsabilizados por seus atos. Vêem o que não existe, ouvem vozes de comando, tomam decisões com base em parâmetros distorcidos, não fazem distinção entre o real e o ilusório. Não porque queiram, porque lhes falte vontade, mas simplesmente porque não lhes é possível. Ninguém pode culpar um cadeirante por não andar, um cego por não enxergar, um acamado por não se levantar. Também ninguém pode responsabilizar um esquizofrênico por não compreender a realidade que o cerca.

Jean não era bandido. Não estava assaltando uma padaria, não violentou ninguém, não se encontrava num beco traficando drogas. Cuidado pela família, esteve internado até dias antes no hospital Alan Kardec, de onde recebeu alta na quinta-feira, 14. Na fatídica noite, entrou em surto, saiu da casa da tia, que o acolhia, carregando um facão, e ficou preso em seus delírios.

A família fez o que podia. Tentou segurá-lo, não conseguiu. Chamou o Samu, que também fracassou na tentativa de acalmar Jean. Sem muitas alternativas, a PM foi acionada para apoiar a ação. Esperava-se que os policiais, fortes, fisicamente condicionados, treinados para lidar com situações tensas, fossem capazes de contê-lo. A realidade não poderia ter sido mais cruel.

Quando a guarnição da PM chegou ao local, Jean já havia danificado a ambulância e ameaçado a equipe de socorristas. Os policiais recorreram então à arma teaser, que “dispara” choques, para conter Jean. Funcionou. Ele caiu e foi algemado. É neste ponto que o injustificável acontece.

Alguns primos de Jean tinham chegado no local e começaram a discutir com os policiais, pedindo que tivessem cuidado com o rapaz. Impossível saber o que se passou na cabeça de Jean. O que se conta é que ele teria se levantado e partido para cima de um dos policiais, exatamente o cabo Maicon Richard. A reação do policial foi atirar. Quatro vezes. Dois projéteis atingiram o peito. Outros dois tiros, diferentes partes do corpo. Jean Silva chegou a ser socorrido, mas não resistiu e morreu.

Obviamente, o que se tem são versões, mas é bom reforçar que, fundamentalmente, ninguém contesta, em essência, o que aconteceu. Nem a PM, nem o Samu, nem ninguém nega que ele tivesse sido atingido pela teaser, que ele tenha caído ao solo, que houvesse sido algemado nem que Maicon Richard seja o autor dos disparos.

É inconcebível aceitar que quatro pessoas, dois deles socorristas, dois deles policiais militares, não tenham condições de conter um homem algemado, atordoado por um choque potente, sem recorrer a tiros letais. Admitir que essa seja a única opção é sacramentar o fracasso absoluto de nossas forças de segurança, cujos profissionais, supõe-se, passem por anos de preparação na academia, treinamento permanente enquanto na ativa e estejam sob o comando de sólidas lideranças. O que aconteceu não foi normal, não é admissível nem pode ser considerado correto.

Parece tão flagrante que há muitos sinais de absurdos cometidos na ação que até o ouvidor geral da Polícia Militar de São Paulo, o advogado criminalista Elizeu Lopes, disse ao repórter Kaique Castro, do GCN, estar surpreso com o fato da arma usada pelo cabo Maicon Richard não ter sido apreendida pelo delegado da Polícia Civil, mas sim, pelo próprio comando da PM. “O responsável pelo inquérito é o delegado. É preciso que o delegado requisite a arma. É o que manda a lei”, finalizou Elizeu. Não foi o que aconteceu.

Há promessa de que o caso seja apurado, um inquérito policial foi aberto, mas é sempre importante lembrar também que, a depender do resultado das últimas ocorrências semelhantes  em Franca, é prudente economizar nas esperanças.

De resto, além de lamentar, profundamente, a morte de alguém que precisava de apoio médico, não de tiros de pistola, é hora de também se indignar com o silêncio das autoridades da cidade. Até agora, é como se este caso – e outros tantos – simplesmente não tivessem  acontecido. O prefeito Alexandre Ferreira (MDB), maior liderança do município, nada disse. É certo que segurança pública não é sua responsabilidade, mas esperar uma palavra de alento, uma cobrança pela apuração dos fatos, não seria nada demais. Morreu um cidadão. Foi morto um doente, algemado, na cidade que ele administra.

Alexandre não é o único. Vereadores, pródigos em postagens em suas redes sociais, nada disseram até agora. Só Della Motta (PODE), policial militar reformado e membro da Câmara Municipal, falou, e mesmo assim, só depois de provocado pela reportagem do GCN. O Ministério Público não se manifestou. A Defensoria Pública nada disse. Os deputados estaduais parecem não ter se incomodado. E o comando da PM em Franca, ocupado por um interino, refugiou-se por detrás de uma protocolar nota oficial, recusando pedidos de entrevista.

A Polícia Militar do Estado de São Paulo estampa, em letras garrafais na página inicial de seu site, sua nobre razão de existir. “Nossa missão é proteger as pessoas”. Alguma coisa acontece neste instante no 15º. BPMI que faz com que certos policiais pareçam ter perdido a noção do que isto significa. A morte de Jean Silva, assassinado por quem deveria protegê-lo, é o mais claro sinal disso. E, não é de hoje, está longe, muito longe, de ser o único.

Corrêa Neves Jr é jornalista e editor-chefe do GCN.

 

 

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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