Talvez

Talvez a natureza nos prepare com estes encontros para experimentarmos ser protagonistas e ao mesmo tempo espectadores de particular espetáculo que terminou e já está no passado, embora possa ter deixado saudades.

Por Lúcia Helena Maniglia Brigagão | 20/03/2021 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para o GCN

Dizem, nos instantes que antecedem a morte o moribundo reveria, como se fosse numa imensa tela e com projeção acelerada, o filme que reproduz a história de sua vida. Nos mínimos detalhes. Voltariam à lembrança, e em ordem cronológica, situações vividas e experimentadas. Amores, desamores, desafetos, coisas boas e coisas más, boas e más ações, belos e feios feitos. Sem truques na edição e em ordem cronológica. Relatam tal experiência aqueles que foram, mas voltaram à vida. Seria esse o momento ideal de acertar contas talvez com Deus, quem sabe com ele mesmo, concluir se viveu bem ou mal, se sua vida fez diferença ou não, se ele valeu a pena ou foi apenas mais um, na multidão.

Treinos para essa magnífica produção cinematográfica individual, a vida e o cotidiano favorecem situações nas quais ocorrem experiências que provocam sensações semelhantes. Cada pessoa tem sua particular e peculiar lista, mas são comuns desencadeadores de recordações coisas como objetos guardados, quase escondidos, subitamente encontrados num canto do armário, na gaveta do criado mudo, na caixa sobre o guarda-roupas. Vestidos ainda com resquício de perfume quer seja pendurados, quer dentro da mala que não serve mais para viagens como que esperando para serem transportados para seu destino final. Roupas que os filhos usaram quando bebês; folhas de árvore ou flores secas guardadas entre as páginas do livro lido há muito tempo, fotografias que congelam instante precioso e sorrisos de gente que nem ri mais. Cheiro de alguma comida ou perfume no ar, o gosto de alguma iguaria especial. Na verdade, paladar, olfato, tato, visão, audição se mobilizam, separada ou conjuntamente, para trazer lembranças boas ou más, não importa. Momentos significativos.

Volta e meia o acaso promove encontros entre pessoas. Ao cruzar a rua, entrar ou sair de algum recinto eis que se fica frente a frente com amigos que se afastaram; familiares consangüíneos ou por afinidade que se tornaram distantes; professores que nos marcaram momentos importantes; vizinhos que se mudaram e nunca mais foram vistos; ex-alunos que inacreditavelmente cresceram, estudaram, se tornaram adultos e profissionais reconhecidos; ex-funcionários que participaram de nossa intimidade. Pessoas inesquecíveis, pois que marcaram nossa vida com doçura, ou a ferro. Ou fogo.

Todavia nada se compara ao fortuito encontro entre pessoas que se amaram desesperadamente, e que sabe-se lá por que motivos, se separaram. Se o amor se esgotou, resta incômoda lembrança, mesmo que boa. Se há resquícios da antiga paixão, o encontro pode provocar desastre pois nessa hora ambos sentem como se tivessem levado belo safanão, além da extra-sístole e da bambeira nas pernas que, se ocorrem separadamente provocam arrepios de prazer ou desconforto. Juntas podem levar ao orgasmo ou ao enfarte, a depender do tipo de recordação que evocam. Tais reencontros e decorrentes emoções costumam render lindos sambas-canções, tangos, baladas sertanejas e pungentes valsas. Renovam sentimentos e ressentimentos, aceleram o coração, despertam recordações e lembranças. Tirá-las do fundo do armário faz desabrochar lembranças e sabor de grandes momentos vividos no passado, além de trazer de volta situações que nos temperaram a vida.

Talvez se possa dizer que nessas oportunidades são produzidas curta-metragens que talvez sejam treino para a produção daquele grande filme, talvez aquele da hora da nossa morte. Mas talvez a natureza nos prepare com estes encontros para experimentarmos ser protagonistas e ao mesmo tempo espectadores de particular espetáculo que terminou e já está no passado, embora possa ter deixado saudades.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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