Janeiros

Por Lúcia Brigagão | 16/01/2021 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para o GCN

Crônica gostosíssima de Mário Prata – ligeiramente amarga, fosse julgada apenas pelo título - “Filho é bom, mas dura muito”, devia ser leitura obrigatória para tantos quantos decidem botar alguém no mundo. A leitura prova – e qualquer pai ou mãe sabe quão verdadeira é a afirmação – que filho “não acaba”: quando a gente pensa que se “livrou” dele, mesmo depois da graduação na universidade, da montagem do consultório, do escritório, da agência, depois do mestrado ou doutorado e até da contribuição financeira para que a festa de casamento fosse estrondosa - ei-lo voltando na forma de neto, pessoinha de quem a gente não quer mesmo se apartar... Releio e percebo como a situação de pais - especialmente latinos – é parecida.

A releitura desencadeia uma série de reflexões: quando é que a gente – adulto, vacinado, criado e considerado pelos mais novos, de forma impiedosa, membro do grupo da “terceira idade” - quando é que deixamos de ser filhos? Quando é que deixamos de querer colo? Quando é que a ausência permanente do pai, da mãe – ou de ambos – não nos causa desconforto e dor? Quando é que a gente se desvencilha do hábito de “contar para a mamãe” – compartilhar com ela – a última gracinha do neto, da neta, o desaforo do cônjuge? Quando é que nos livramos da mania de ir ao telefone para perguntar se a mãe, o pai – ou ambos – precisam de alguma coisa do supermercado, para onde estamos indo? Quando é que vamos nos dar conta de que aquela receita, aquela informação sobre algum parente, aquela frase incompleta da canção jamais serão rematadas porque quem poderia fornecer a peça que falta nesses e em outros quebra-cabeças, está ausente, permanentemente ausente? E essa sensação de abandono e orfandade, vai passar? Coisa mais ridícula na nossa idade, não é? Então porque não acaba?

Embora papai tenha partido há mais de trinta anos, ele ainda é referência nas rodas domésticas quando nos lembramos, contando para os descendentes que só o conhecem na fotografia – casos que descrevem a irreverência, o bom- humor, as estripulias pelas quais era responsável entre amigos, companheiros de trabalho e familiares. Alguns anos da partida de mamãe e meu coração ainda se aperta quando me perguntam dela. Vizinhos que foram morar distante querem saber sobre sua saúde, dizem sentir saudades da sua disponibilidade para ouvir ou dar informações sobre alguma coisa. Parentes que moram em outras cidades e ficaram silenciosos durante anos, de repente chegam aqui e batem à minha porta perguntando como encontrá-la. Fico engasgada, sem conseguir responder.

Às vezes só observo, em outras dialogo com amigas que também perderam pais e mães e concluo que todas elas acordam que experimentam a sensação de orfandade e desamparo. Não estranharei se os homens disserem que sentem mais a falta dos pais – afinal eles foram modelos, espelhos e parâmetros. Mas é quase unânime mulheres e homens concordarem que perder a mãe, independente da idade, nos faz sentir pequenos e abandonados. E aí a gente fala besteira: mães não deviam morrer ou, se mortas, deviam continuar nos dando assistência.

Por várias razões e quase nenhuma lógica, aprendi a temer o primeiro mês do ano. Em anos diferentes, dias coincidentes, encarei duas cirurgias bravas, mas que vieram a fortalecer meu caráter, dando-me noção não apenas de minha pequenez diante do imponderável, quanto da minha condição de mortal. E também foi num Janeiro – mesmo dia! - que minha mãe partiu, depois de um bocado de sofrimento, angústia e aflição. O rombo no peito ainda é grande, mas resultaram importantes conclusões. Primeira delas, que nós, filhos, não devemos perder a oportunidade de dizer às mães o quanto elas são importantes para nós, mesmo que não seja dia de fazer isso. Segunda, que mãe também é muito bom, mas não dura para sempre. Infelizmente, aliás.

(Escrita em 14 de janeiro de 2011)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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