Cotidiano

Por Lúcia Brigagão | 05/12/2020 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Não dava nada por aquele dia. Muito menos por aquela manhã. Meio chuvosa, meio ensolarada, muito chata, imprevisível. Cedinho, exercícios, que o corpo pede. Na sequência, decidi ir ao shopping, coisa que não fazia há meses. No percurso, ainda no trânsito, alguns carros ultrapassaram o meu. Como estava à direita, ouvi buzinas - ainda que delicadas - à guisa de cumprimento talvez. A maioria me ignorou. Somente um veículo, e de marca famosa, fez estardalhaço a ponto de me assustar. Acredito que apenas para que eu olhasse e admirasse a beleza do automóvel, carrão mesmo, já que não reconheci o motorista. Tem muito disso aqui na cidade. Surpresa: quando precisei mudar de pista, dei sinal, os carros atrás do meu deram distância, fiz a conversão. Concluí que ainda existem pessoas educadas, bem educadas aliás, atrás dos volantes. Poucas, mas existem. Ah! Ia esquecendo, num cruzamento, ao brecar para dar passagem a jovens mães empurrando seus carrinhos, que claramente queriam atravessar a rua movimentada, os demais veículos atrás do meu também pararam. Até estranhei. Ninguém buzinou, ninguém fez falta de educação. Senti-me na Suécia.

Cheguei, estacionei na vaga destinada a pessoas da minha idade, coloquei a placa para justificar meu direito. Entrei, depois de cumprir o protocolo: máscara, álcool, limpar os pés. Fui direto à livraria. Comprei o livro que procurava, paguei, saí de lá, olhei algumas vitrines, fui tomar café. Abri a bolsa para pagar, cadê a carteira? A carteira mais caneta, mais talão de cheques, mais cartões de crédito, mais comprovantes de seguro saúde, mais algum dinheiro, mais documentos, mais fotografias. Deu aquele frio na barriga, a sensação de velhice, como se eu nunca tivesse perdido algo antes. Mentalmente refiz o trajeto e percebi que devia voltar à livraria. Voltei. Fui recebida por três sorrisos: o do gerente, da balconista e até do freguês que ainda permanecia no espaço, entabulando animada conversa com os outros dois. Sim, tinha esquecido sobre o balcão. Recebi a carteira de volta e até contei para eles que certa vez, no aeroporto de Guarulhos, depois de comprar revistas e livros, aguardava na sala que chamam de vip, gentileza do meu cartão de crédito, chamada para o voo. Pois não é que esqueci a sacola no toalete? Só dei falta, já na fila de embarque. Voltei correndo, perguntei às recepcionistas e funcionárias do lounge se alguém havia deixado com elas minha sacola recheada: não, ninguém se manifestara. Como sacola de livros não desaparece no ar, prometeram pesquisar pelas câmeras, me avisariam, caso tivessem alguma notícia. Já faz três anos, acho que posso perder a esperança da devolução. Muito obrigada pessoal da livraria no Shopping. É bom perceber que ainda há pessoas confiáveis e honestas. Para celebrar, fui tomar meu café, enquanto observava o trânsito humano naquele espaço. De repente rapaz de máscara e boné, atravessa o corredor à minha frente, em direção ao jardim. Apesar da presença de muitas outras pessoas que poderiam constrangê-lo, tirou a máscara e cuspiu. No chão do corredor. Além de nojento, perigoso gesto nestes tempos de Covid. Caminhando apressado recolocoua-a novamente e continuou seu trajeto. Ainda sob efeito da repugnante cena, bem mais tarde, para completar as belezuras do dia, presencio motorista jovem, bonita e de posses a julgar pelo carro que dirigia, chegar na loja e estacionar na única vaga para deficiente físico, apesar do aviso da reserva do espaço em letras garrafais. Sem demonstrar qualquer incômodo ou preocupação, desceu, ligou o alarme do carrão, entrou no estabelecimento. Demorou lá dentro. E era dia do Deficiente Físico, era 3 de dezembro. Triste coincidência.

Passei o dia imaginando como seria danoso aproximar o rapaz cuspidor e a moça sem preocupação com o próximo. Provavelmente criariam prole que joga papel no chão; restos de comida pela janela do carro. Dou margem à imaginação: não ensinariam aos filhos que produtos nas gôndolas do supermercado não são brinquedos e que ninguém merece ouvir o que é falado pelo vizinho ao celular. Que é preciso respeitar e não invadir espaço alheio. Indo mais longe: que professor não é objeto. Que é necessário cumprimentar, reconhecer as pessoas e, pelo menos, agradecer caso recebam algum favor. Quando adultos, os produtos deste cruzamento infeliz, imagino que se tornariam novos cuspideiros e ocupantes de vagas especiais nos estacionamentos.

Pobre Brasil cheio de brasileiros sem educação.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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