GAZETILHA

Não bastam os leitos

Novos leitos de UTI são fundamentais, mas não bastam. Se nada for feito para conter o avanço da pandemia em Franca, do ritmo de contágio, de internações e de mortes, não termos como avançar de fase. Muito menos, de socorrer quem precisa.

09/08/2020 | Tempo de leitura: 8 min

“O mal de quase todos nós é que preferimos ser arruinados pelo elogio a ser salvos pela crítica”

Norman Vincent, pastor e escritor americano

 

A última semana foi marcada por notícias difíceis para os brasileiros, de modo geral, e para os moradores de Franca e região, particularmente. Foi no sábado que o país alcançou a trágica marca das 100 mil vítimas de coronavírus. Cem mil vidas perdidas para o vírus, muitas delas desnecessariamente ceifadas por conta de uma divisão que assola o país e que faz com que, mesmo depois de cinco meses de pandemia, muitos ainda ignorem seus riscos, minimizem a gravidade dos sintomas, apostem em “medicamentos” reprovados pela medicina por serem inócuos e se considerem super-heróis imunes ao vírus.

 

Um dia antes, na sexta-feira, o governo do Estado de São Paulo anunciou a classificação das 22 regiões de Saúde para a próxima quinzena. Nada menos de 15 regiões puderam comemorar a fase Amarela, quando restaurantes, bares, academias de ginástica, salões de beleza e o comércio podem funcionar, com poucas restrições. Outras cinco tiveram menos sorte e foram colocadas na fase Laranja, onde podem funcionar apenas estabelecimentos comerciais, por algumas horas por dia. É ruim, mas é bem menos grave do que a situação das duas únicas regiões mantidas na fase Vermelha, a de máxima restrição, onde nada, além dos serviços essenciais, pode funcionar de portas abertas. Uma delas é Registro, no Vale do Ribeira, área mais pobre do Estado. A outra é justamente a nossa Franca. Não foi uma surpresa. Há semanas venho alertando que isso aconteceria. Desde a última segunda-feira o portal GCN já antecipava que, com base nas estatísticas oficiais, a fase Vermelha era certa. Foi o que aconteceu.

 

Infelizmente, nem os brasileiros, com honrosas exceções, nem os francanos, idem, parecem aprender com as lições que a pandemia ensina a cada semana. Fui o primeiro a avisar, há mais de dois meses -  quando comerciantes, donos de academia, religiosos e outras categorias pressionavam na Câmara Municipal pela abertura de tudo - que o momento era de cautela. Fui voz isolada no Legislativo e duramente criticado pelos que apregoavam que “estava tudo bem”, que tínhamos condição de estar na fase Verde. Naquele momento, insisti, apesar da violência irracional de muitos que preferiam me achincalhar, que o problema de Franca não estava no número de casos nem de óbitos, mas sim, na capacidade – ou falta dela – hospitalar.

 

Até por dever de ofício, sou estudioso, e desde o princípio dedico parte do meu dia a analisar os dados da Vigilância Epidemiológica do município e do Estado. Estava claro, e disse isso publicamente, mesmo diante de pesadas críticas, que o número de leitos de UTI era insuficiente. Que quando os casos aumentassem, o que seria inevitável, observado o ritmo de crescimento da pandemia por aqui nas semanas anteriores, não teríamos leitos para tratar as pessoas. E que, com uma ocupação acima de 80% dos leitos do SUS, estaríamos condenados a ficar na fase Vermelha. Disse que, naquele instante, não era hora de discutir abertura, mas sim de lutar, urgentemente, por mais leitos. Preferiram criticar e zombar. Virei meme, fui criticado por adversários políticos e atacado violenta e covardemente até mesmo por alguns que diziam representar, paradoxalmente, os pacíficos ensinamentos de Jesus Cristo. No final, eu estava certo. Nunca ninguém se desculpou pelas ofensas. Nem pelo erro de avaliação.

 

Demorou, mas há pouco mais de um mês enfim a cidade acordou para a necessidade de mais leitos. Pressionados pela triste realidade de ver a Santa Casa operar com 100% de ocupação na Ala Covid e com gente no Pronto-socorro à espera de uma vaga que não existia, políticos das mais variadas vertentes se uniram no discurso de necessidade urgente de ampliar a capacidade hospitalar para receber quem precisa de atendimento. Infelizmente, o entendimento não foi total. Alguns, incapazes de fazer um “mea culpa”, voltaram sua artilharia contra as cidades da região, como se fossem elas as responsáveis pela sobrecarga do sistema de saúde.

 

O próprio prefeito de Franca, Gilson de Souza, chegou a gravar vídeo onde cometia duas atrocidades. A primeira, dizer, sempre indiretamente, como é de seu habitual feitio, que a região era a culpada por ocupar 70% dos leitos da Santa Casa. É verdade, assim como é verdade que todas as regiões do Estados vivem idêntica situação. Hospital público grande, de referência, capaz de cirurgias e atendimentos complexos, é privilégio apenas das sedes das regiões. As menores cidades têm unidades básicas ou prontos-socorros. É assim em toda parte. Mas Gilson, incapaz de assumir sua responsabilidade, acenava com a ideia de que Franca estava ótima e se, não fosse a região, não haveria problema. Só esqueceu de dizer que, se não fosse a região, também não teríamos a Santa Casa custeada pelo Estado. Ou seja, o problema seria o mesmo. Para piorar, ainda disse que “a Franca está superando o Covid”, quando os números mostram exatamente o contrário, reforçando, de forma equivocada, a ideia de que basta ampliar o número de leitos para resolver o problema.

 

Gilson errou ao ceder a pressões e avacallhar a fase Vermelha em Franca, limitando o trabalho de fiscalização. Errou de novo ao travar por meses a instalação de novos leitos de UTI na Santa Casa, por conta de uma burocracia que fracassa miseravelmente em enfrentar. Errou outra vez ao apostar em “curas milagrosas”, que não se mostraram eficazes em nenhum lugar do mundo, como forma de combate ao coronavírus. Errou, por fim, ao sinalizar para a população que está tudo bem e que basta instalar mais leitos que vamos avançar.

 

Diferente de outras regiões do Estado e do país, Franca não chegou ao platô, quanto a establidade e alcançada. Por aqui, estamos em curva ascendente de casos, de internações e de óbitos, num crescimento exponencial. Basta olhar os números do governo paulista e da própria prefeitura. Franca fechou o mês de março com apenas 1 caso confirmado e nenhuma morte. Abril encerrou com 36 novas confirmações e a primeira morte pelo vírus. Maio trouxe 87 novos positivos e outra morte. Junho teve 247 infectados e 6 óbitos. No mês de julho, foram 943 casos e 26 vítimas fatais. Agora, em agosto, apenas nos primeiros oito dias do mês, já contabilizamos 623 casos positivos de coronavírus e 12 mortes. Basicamente, nesta primeira semana de agosto já tivemos 50% mais de mortes e duas vezes mais casos do que no acumulado de março a junho.

 

É exatamente por analisar os dados que propus, há quase um mês, que Franca adotasse um lockdown parcial, como foi feito, com êxito, em dezenas de municípios brasileiros – e, com muito mais rigor e eficiência, em países inteiros. Aumentar leitos é fundamental, mesmo porque há gente esperando na fila por atendimento, mas não basta. É preciso, neste instante, conter também o ritmo de contágio da doença na cidade.

 

Sem isso, Franca corre o risco de, na próxima avaliação, ser a única região mantida na fase Vermelha – ou, na melhor das hipóteses, apenas seguir rumo ao Laranja, o que pouco ajuda. Quem dedicou alguns minutos do seu tempo para ouvir o que diziam as autoridades do Estado na tarde da última sexta-feira, ao invés de apenas praguejar, percebeu que a região de Registro tinha nota para avançar para a fase Laranja. Registro foi mantida forçosamente na fase Vermelha apenas porque o governo acha precoce promovê-la, mas nota aquela região tinha. A gente, não. E para piorar, ainda que consigamos resolver o problema dos leitos, a nossa avaliação na Evolução da Pandemia, que mede exatamente internações e óbitos, está disparada e pode nos segurar no Vermelho.

 

Na última sexta-feira, quando ainda não estavam no comparativo os números dos últimos dias com a enxurrada de casos de quinta, sexta e sábado, mal tínhamos nota para ficar na fase Laranja. Se nada for feito para conter o contágio, se a fiscalização não for reforçada e respaldada, se o fluxo de pessoas nas intermináveis filas que se formam em algumas lojas não for contido, e se os jogos de futebol e as festas não forem coibidas, poderemos ficar retidos mais uma vez não apenas pela falta de leitos, mas também pela evolução da doença.

 

É preciso agir, e agir muito rápido. Quinze dias passam voando. Os leitos que a Santa Casa adicionou estão tomados. Os novos, que sequer foram contratados, ainda vão demorar muito, até porque a própria instituição já avisou que, mesmo com dinheiro e respiradores, não consegue implantar mais do que 5 novos a cada 15 dias. Conter a disseminação do vírus é crucial. Que aqueles que têm a responsabilidade de agir e ignoram mais este alerta não venham amanhã dizer que não sabiam. Ninguém aguenta mais a quarentena, mas é preciso seriedade e trabalho duro para sair dela. Não serão os discursos demagógicos e a covardia que vão nos tirar de onde estamos. O tempo corre rápido. A necessidade de atender quem precisa de socorro, também.

 

PS: impossível terminar o texto de hoje sem registrar a postura do presidente Jair Bolsonaro diante dos 100 mil mortos. No sábado em que superamos a trágica marca, o presidente foi às redes sociais para celebrar a vitória do Palmeiras. Não que o Verdão não mereça, mas é inacreditável imaginar que ele tenha se preocupado mais com isso do que com as mortes de tantos brasileiros. Neste domingo, manifestou-se sobre o Líbano, que também merece apoio e suporte, mas em cuja tragédia morreram 150 pessoas, nenhuma delas brasileira. É um número 666 vezes menor do que as vítimas do Covid por aqui, às quais ele reservou apenas na tarde de domingo um texto insensível e, mais uma vez, recheado de comparações ilógicas e falaciosas. Lamentável, para dizer o mínimo. Vergonhoso e revoltante, para resumir o que sinto.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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