Julgamentos

Senti-me orgulhosa após encontro fortuito com ex-aluno que me agradeceu pelo que “lhe ensinei no passado, durante certa aula de Filosofia”.

12/10/2019 | Tempo de leitura: 2 min

Senti-me orgulhosa após encontro fortuito com ex-aluno que me agradeceu pelo que “lhe ensinei no passado, durante certa aula de Filosofia”. Curiosa, perguntei o tema da específica lembrança. Disse-me que se lembrava particularmente de aula quando lhe provei o quanto era difícil julgar atitudes alheias; o quanto éramos ridículos quando, arvorados de manto sagrado imaginário, acreditávamos capazes de nos tornar deuses, aptos para apontar o certo e o errado na conduta alheia. Ridículos e abusados, pensei comigo.

Lembrei-me da situação que naquela ocasião propus para análise, escolhida entre outras do gênero. Certo casal se encontrava às escondidas. Para fazê-lo, pagavam canoeiro que os ajudava na travessia de rio caudaloso. Certa tarde, quando tentavam voltar, perceberam que forte tempestade se aproximava. Deviam se apressar e voltar juntos. Ela deu falta de sua bolsa, com todo seu dinheiro. Pediu crédito ao canoeiro, que negou, alegando que deveria prestar contas. E que, se contasse o motivo da diferença, revelaria o segredo dos encontros. O dinheiro do amante só dava para sua própria passagem. E ele tinha compromissos do lado de lá. Pior. Que, se lhe emprestasse, o dinheiro entraria na relação deles e tornaria venal o que era amor, tão distante de mesquinharias mundanas. Ela tentou voltar a nado, morreu no trajeto. Quem seria o culpado? Ela, por seu caso extra-conjugal? Ele, que lhe negou o dinheiro para a volta? O canoeiro, que lavou as mãos? Meu ex-aluno percebeu quão difícil é julgar atitudes alheias... quando mal damos conta de nos avaliarmos. E que julgamentos morais não ficam restritos ao comportamento sexual. Qualquer relação social está eivada de possibilidades semelhantes. O cotidiano oferece situações para o exercício dos nossos julgamentos morais. A balconista que trata mal o freguês por sua aparência. O médico que se recusa a atender o paciente porque está além de seu horário. O comerciante que propositadamente erra o troco. Quem não recolhe dejetos do seu animalzinho, na rua. Sobram situações do gênero.

Plantei mais de vinte árvores nas proximidades de casa, que hoje oferecem sombra para os carros de vizinhos invasivos que, sem pedir licença, estacionam os deles e deixam os nossos sob o sol. A rua é pública, mas a iniciativa foi nossa e nem pensam em imitar nosso gesto, pelo trabalho que dá. Reclamamos, mostram-se agressivos. Outra... O guarda noturno que pagamos para nos dar tranqüilidade, recebe gorjetinha dos vizinhos para também proteger seus carros, lojas, casas e filhos notívagos. Mais. Pagamos impostos para manter a cidade limpa e íntegra: a quantidade de buracos aumenta todo dia; a qualidade da pavimentação das ruas é péssima. Apagam memórias e registros urbanos à nossa revelia e ainda pintam nossos santos e monumentos com cores estapafúrdias: já foram dourados, nos tempos petistas de governo... Difícil, não?

 

Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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