Apelidos

Papai era bastante popular. Esportista, boa praça, engraçado, bem humorado, moleque nas brincadeiras.

28/09/2019 | Tempo de leitura: 2 min

Papai era bastante popular. Esportista, boa praça, engraçado, bem humorado, moleque nas brincadeiras. Só não era essa flor quando contrariado, quando o Palmeiras perdia ou lhe faltávamos com o respeito ou obediência. Desconheço, porém, quem reclamasse de alguma grosseria cometida por ele. Teve apelido de Bezerro, desde pequeno. O salão de barbeiro de vovô ficava na praça central da cidade e era ali que os fazendeiros deixavam, cedinho, galões de leite que os leiteiros depois pegavam, dividiam pelos vidros e distribuíam. Papai pilhava o leite, tomava quanto entendia e, para não dar na vista, completava os latões com água. Descoberto, como castigo carregou a alcunha pela vida afora, cognome legado ao filho caçula, ainda hoje, conhecido como Bezerrinho... Talvez por vingança, era hábil em apelidar as pessoas. Não era bullying. Ele sacava habilidade, alguma idiossincrasia, semelhança, e usava tal traço físico, ou de personalidade, por humor, sem ofender. O Banco do Brasil, onde trabalhava, ficava numa esquina, coincidência, quase ao lado da barbearia de vovô, berço dos apelidos... Prédio imponente, com grades de ferro trabalhadas, portas giratórias de vidro e madeira. Não eram muitos funcionários, mas todos se conheciam. E tinham apelidos, dados por papai. O colega magrinho, alto, que andava curtinho, agitado, puladinho, chamava de ... Perereca. Outro, calmo, tranqüilo, mineiro de pouca fala, era o Biscoito. O gerente, posudo, bonitão, charmoso, era o Boi. Nelson Nogueira, magro, alto, de pouca fala, sizudo, o próprio dono de fazenda, era o Coronel. E tinha os irmãos Carlos e Paulo, que chegaram a Franca praticamente juntos. Um, se casou com Rosinha da dona Júlia, nossa vizinha. O outro com Lúcia, minha xará.

Carlos e papai desenvolveriam ao longo de décadas, profunda, linda, sincera e especial amizade, sozinha, maior que a soma de todas as outras. Eles riam, ninguém sabia do quê. Eles se chamavam por apelidos, que apenas eles conheciam. Contavam-se histórias, das quais apenas eles achavam graça. Não compartilhavam seus segredos e nem adiantaria, porque o humor deles era bastante peculiar. Aproximavam-se, desatavam a rir. Papai morreu, aos 51 anos, nos anos 70. Carlos foi encontrar com ele sábado. Devem estar abraçados; dando gargalhadas, depois de trocar frases curtas e ininteligíveis; matando saudade.

A amizade deles permaneceu forte e foi além da morte prematura de papai pois amálgama de bom humor, mútua admiração, delicadeza no trato, perdão, cumplicidade e alguma divergência, o que os tornava algumas vezes misteriosos e favorecia a eclosão de facetas insuspeitadas de personalidade de ambos, desconhecidas até por eles mesmos. Continuou forte pelos últimos anos, independente da ausência física de papai, porque sincera, pura, limpa, transparente e leve. Um dia revelarei os apelidos que mutuamente se deram. Por hoje, digo apenas que Nicola e Carlos estão novamente juntos, recuperando a saudade física pela longa separação.

 

Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br

  

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