Jaulas

Não raro temos histórias da infância que envolvem proximidade e experiências com loucura e ridículo.

27/07/2019 | Tempo de leitura: 2 min

Não raro temos histórias da infância que envolvem proximidade e experiências com loucura e ridículo. Juntas ou separadas. Em qualquer ocasião da vida situações semelhantes acontecem, mas lá nos primeiros anos tomam configuração especial, pois se misturam às experiências corriqueiras, comuns e usuais do nosso cotidiano. Adultos, fica difícil separar o que foi realidade e em qual preciso ponto começa a fantasia.

Luziinha, prima distante, morava numa jaula, construída no fundo da casa de sua mãe. Lastimável, condições sub humanas, mas justificáveis, diziam-nos. Detalhes se perderam ao longo das décadas, mas contavam-nos que ela fora uma menina muito inteligente, viva, perspicaz. Ligeiramente diferente das outras da sua idade, talvez. Viva e perspicaz, com certeza. Morava em Uberlândia, com sua família. Foi convidada a morar no Rio, com parentes abastados que cuidariam de sua educação, encantados com suas possibilidades. Ninguém sabe, não há testemunhas que elucidem o enigma. Certo dia Luziinha fugiu e foi achada em desumanas condições, perdida entre Rio e Belo Horizonte.

Nunca mais falou, perdera suas características humanas, urrava, estava agressiva. Foi levada para Uberlândia e só eventualmente estava entre irmãos e primos. Construíram-lhe literalmente jaula no fundo de casa, e a confinaram. Ora passiva e perdida em lembranças, ora nos cantos enroscada em si mesma, pronta para atacar qualquer um que considerasse ameaça, ficava lá. Éramos pequenos, tínhamos medo dela e mesmo sabendo de suas reações intempestivas, provocávamos para vê-la se manifestar. Ela representava para nós a possibilidade de desobediência, de manifestação explícita de todos os desejos, necessidades, e a permissão para a explosão de ódio. Acho que era por isso que ela nos fascinava. Tínhamos cada um de nós, com ela, uma relação de amor e ódio, de medo e atração, vontade irreprimível de provocar sofrimento e ao mesmo tempo sofrer: masoquistas e sádicos. É possível que, de uma forma ou de outra, todos tenhamos vivido tais experiências. Se não com a prima louca, com o tipo popular das ruas, o colega diferente da escola.

Hoje não mais tenho Luziinha para reagir à minha provocação e realizar essa catarse por mim. Hoje eu mesma tenho que gritar, ficar descabelada, procurar meus cantos de sossego dentro de minhas jaulas mentais para ter paz, buscar remédios que aliviem minhas dores da alma. Vou com meus próprios recursos à cata de informações e ajuda para saber distinguir entre a loucura sã e a sanidade louca. Não raro percebo que não sei mais estabelecer ou separar o comum, corriqueiro, usual e ordinário, nas situações também cotidianas. Não sei o que é loucura; não sei o que é ridículo. Socialmente parece-me que tudo é permitido, tudo deve ser aceito. Para qualquer situação há desculpas, justificativas. Os limites do público e do privado, os do particular e do social estão quase desaparecendo em nome da evolução, em nome de avanços tecnológicos, sob a égide do amplo conceito de modernidade. Penso, seriamente, na possibilidade de construir para mim, jaula no fundo do quintal.


Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br 

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