Balanço

Quando nasci, anjo desconhecido e meio safado determinou: eu andaria na corda bamba enquanto vivesse. Optaria por terrenos e lugares perigosos; encararia de frente situações das

16/03/2019 | Tempo de leitura: 2 min

Quando nasci, anjo desconhecido e meio safado determinou: eu andaria na corda bamba enquanto vivesse. Optaria por terrenos e lugares perigosos; encararia de frente situações das quais muitos machos fugiriam; romperia barreiras; desbravaria terrenos acidentados; andaria na contramão do fluxo comum; marcharia com o pé errado; gostaria de pimenta, de quiabo e de jiló; pediria cerveja quando fosse apropriado champagne; vestiria preto quando predominassem florais; enfrentaria multidões mas coraria de vergonha ao receber elogio. Nas amizades, contrariria a tese lé com lé, cré com cré. Jamais me revelaria intimamente, sem mais nem menos. Para me conhecer, os candidatos a amigos passariam por prova de fogo, seriam capazes de superar aparências. Familiares me compararam ao abacaxi e afirmaram: por trás da minha casca grossa, existia algo palatável. A vida me ofereceu condições para ser feliz. E eu fui. Amei muito; tenho filhos, netos, desfrutei do amor de marido, pais e sogros, irmãos e sobrinhos. Moro numa casa legal, tenho discos, livros e filmes de estimação. Conheci muitos lugares. Li muito. Aproveitei condições fantásticas de crescimento através das obras humanas: bebi-as com sofreguidão. Visitei os mais famosos museus do mundo; pisei o mesmo chão que os mestres pisaram; andei pela terra dos ancestrais. Conheci gente fantástica, gente maravilhosa, gente nem tanto. Ninguém passou em branco, percebo agora, ao pintar este mural, contabilizando feitos, não feitos, mal feitos e bem feitos pessoais.

O Anjo deu-me a capacidade de gostar das pessoas, de amá-las sem preconceitos ou restrições, o que me expôs milhares de vezes ao ridículo, à frustração, à decepção. Felizmente, a maioria valeu a pena. Já tomei chuva e banho de cachoeira na Canastra, onde dormi na mais completa escuridão com a Lua me iluminando por completo, clareando minha memória. Já tive a sensação de estar sozinha no mundo ouvindo o silêncio, sentada em cima de monte de areia com mais de trinta metros de altura. Lá ao longe, o mar. Quase no fundo da formação, imenso lago de água doce, resultado de chuvas. E ali chorei, porque algo me dizia que logo, logo, descobriria que viver é ato solitário. Tive sarampo; crupe, peritonite, cachumba, berne. Fui mordida por cachorro, tenho marcas de catapora e trinta e três dentes – sou mutante.

Sempre levei muito a sério e confiei em tudo que meus médicos prescreveram, conservando o hábito de visitá-los duas vezes ao ano, religiosamente. Desobedeci pai, mãe, professores, amigos, padres, sou normal. Natural que fumasse, hábito que começou lá pelos doze, treze anos, iniciado, como quase todos na minha geração, com o talo de chuchu. Tenho planos de viajar muito ainda, desfrutar da companhia dos netos e esperar que cheguem outros, muitos outros. Tenho planos de terminar projetos inconclusos, visitar gente que não vejo há muito tempo. Especialistas afirmam que tenho muita vida pela frente. Eu é que ando muito assustada. Achei que era a deusa da minha rua e não passo de mortal que, de repente, sente medo, muito medo de morrer.

 

Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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