Carnavais

02/03/2019 | Tempo de leitura: 2 min

Preparei-me décadas para ser avó. Espelhada nas minhas, não mais presentes e ainda adoradas, esforcei-me para cozinhar especialidades daquelas que só a avó tal sabia preparar; para criar e costurar roupas de boneca como a outra fazia; para contar histórias e causos engraçados como todas elas. Fui além. Preparei cômodo de casa, coloquei nele guarda-roupa herança da minha sogra, parte dos móveis de quarto comprado quando de seu casamento. Dentro dele, roupas de carnavais passados; roupas de festas; xales de crochê; de pele animal; casacos ; vestidos dos quais não me desapego. Lembranças. Tudo fora de moda. Fantasias. Idealizei que quando minhas netas ficassem mocinhas iriam se divertir se fantasiando de vovó, de bisavó, de bregas, de chiques, sei lá.

No Carnaval passado, estimulada por doces ventos do passado, busquei antiga fantasia de cigana, chiquérrima: toda em lenços coloridos de musselina de seda pura, bustiê dourado e colete preto de veludo bordado com pedrarias. Se não me serviu de início, tesoura, linha e agulha, acabei por me servir nela. Comprei confete, serpentina. Lembrei-me do lança-perfume. Pedi, ofereceram-me algo chamado “cheirinho da loló”. Não aceitei. Voltei para casa, pesquisei meus antigos discos de vinil, que a neta Maria Fernanda chamava de “cedezão”, em busca de músicas de Carnaval. Sem agulha no toca-discos, impossível reproduzi-los. Um filho sugeriu-me tentar o gramofone. Nova peregrinação pelas poucas lojas de CDs que ainda resistem. Tem Pierrô Apaixonado, Touradas em Madri, Mamãe Eu Quero, Linda Morena, Jardineira? A vendedora disse que tais músicas eram do século passado. Sugeriu Vem Cutucar meu Boga; Atrasadinha e Problema Seu. Não, obrigada. Queria marchinhas antigas, assim, ó. Comecei com “o teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor, mas como a cor não pega, mulata, mulata eu quero o teu amor”, ela amarelou: você corre risco de ser presa, alertou-me, isso é Crime de Racismo! Eu cantava, ela se horrorizava mais e mais e pontuava. Me dá um dinheiro aí? (É Apologia ao Assalto!); Cabeleira do Zezé? (Homofobia!). Maria Sapatão, de dia é Maria, de noite é João. (Ficou louca?) Apresentou-me, ao invés, “Que tiro foi esse?” da musa Jojô Todynho e o refrão de outro antigo sucesso, “E o motivo todo mundo já conhece, o de cima sobe e o de baixo, desce.” Profundo, não? Gentilíssima, queria até me ensinar os passos e gestos das coreografias, que aliás eram a mesma para todas as músicas. Ligeiramente pornográficas, eu diria. Ou extremamente sugestivas, talvez.

Sem fantasia que me servisse, sem trilha sonora, sem pique para me encharcar, sem o Pablo Vittar para me inspirar, sem competência igual à de Anitta para rebolar e sem achar que ficar doido é o máximo de prazer, me mandei para a beira do rio. Um dia, no futuro, eu explico para as netas o que era o Carnaval onde a gente se divertia, sem perder a consciência.

Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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