Viver

Nossos olhares se cruzaram, reconheci certa angústia dentro dos dela. Era situação festiva, tristeza não tinha lugar ali. Aproximou-se, até sorriu.

05/01/2019 | Tempo de leitura: 2 min

Nossos olhares se cruzaram, reconheci certa angústia dentro dos dela. Era situação festiva, tristeza não tinha lugar ali. Aproximou-se, até sorriu. Ao lhe perguntar se estava tudo bem, ela deixou as lágrimas virem, limpou-as com as costas da mão e, ainda sorrindo, explicou que ficara emocionada porque olhara o pai de longe ali na festa e se deu conta que ele, já na faixa dos noventa e alguns anos, dava sinais em certos momentos de não mais reconhecer familiares e amigos presentes.

Brancos da memória; dificuldade em reconhecer pessoas; lembrar nomes de lugares; palavras que desaparecem num segundo, que ficam na ponta da língua e não vêm, não podem ser consideradas evidências de fraqueza intelectual exclusiva da velhice: crianças, jovens, jovens adultos e adultos padecem desses males. A gente se ri deles, caçoa da pessoa, zomba do esquecimento. Mas as mesmas manifestações nos pais idosos, nos avós, nos bisavós, nos tios têm um gosto amargo e são evidências de que lentamente nossos entes queridos estão se desligando da realidade, protegendo-se dessa forma da dor da despedida. Ninguém é eterno, mas ninguém sabe quando vai partir. A morte não tem lógica, tanto assim que atribuímos a forças superiores a vontade e decisão de quem, quando e como vai embora. Dizem os pessimistas (que se dizem realistas) que a gente vai morrendo aos pouquinhos, que a gente morre lentamente, todo dia um pouco, que um dia a mais é um dia a menos.

A morte já foi motivo de muitas peças literárias, de muita elucubração, assunto de rodas humanas que se juntaram ao redor de fogueiras, de mesas redondas, quadradas e ovais, enfeitadas com ícones e símbolos. E nunca se chegou a qualquer consenso. Longe de ser racional, a mais lírica de todas as explicações para a morte é a das Três Moiras, ou Parcas, filhas de Zeus, chamadas Cloto – que tece o fio da vida de cada ser; Láquesis, que cuida de sua extensão e caminho e Átropos, que quando bem entende, corta o fio, o que determina o fim da existência do ser a quem o fio corresponde.

Entra ano, sai século, ainda é desconfortável falar do assunto, quanto mais enfrentá-lo. O que nos resta é viver com intensidade, delicadeza e suavidade, compartilhando com quem amamos o agora, o hoje, o aqui, que são as únicas realidades que nos pertencem. Parece que estou prontinha para enfrentar com galhardia as perdas que ainda irei sofrer. Isso sem levar em conta que não estou livre de ser a perda dos meus entes queridos. Não estou. Considero a morte além de grande incógnita, absoluta aberração. E, mesmo acreditando que a natureza é sábia, busco por toda parte a resposta do “se foi pra desfazer, por que é que fez?”.  

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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