Tendepá

Franca era cidade pequena, ficava pra lá de onde o Judas perdeu as botas. Tinha praça central com coreto, caramanchão

26/10/2018 | Tempo de leitura: 2 min

Franca era cidade pequena, ficava pra lá de onde o Judas perdeu as botas. Tinha praça central com coreto, caramanchão, três farmácias e numa delas, mamãe buscava vidrinhos de penicilina vazios que ela lavava, esterelizava, secava, passava cola e me mandava cobrir com linha de novelo, para me acalmar e lhe dar folga para os afazeres domésticos. Não me lembro disso, era bem pequena, mas tenho fotografia sentadinha no degrau da cozinha que dava para o quintal, superconcentrada, como se estivesse medindo os interstícios das carreiras da linha, uma após a outra, escolhendo cores, manipulando-as, sem subir nas árvores, sem ficar puxando a barra da saia dela, sem ficar perguntando. Mamãe não tinha diploma, mas sabedoria suficiente para entender de criança com bicho carpinteiro no corpo, como se dizia, então.
 
Um dia mudamos para nossa casa própria, que ficava na periferia, entenda-se três quarteirões para baixo da Igreja Matriz, mas no trecho da rua que não tinha calçamento. Dizem que era casa popular, mas para nós era palacete. Apesar da precariedade do entorno, o chão brilhava com escovão e cera Parquetina; muro coberto de amor-agarradinho; samambaias vicejantes nas latas de vinte litros pintadas de verde; e as cortinas de tecido branco, made in home by mammy. O melhor, a vizinhança mirim formava grupo, conhecida como a “gangue da Saldanha Marinho”, que era rival da “gangue do Cubatão”, que era inimiga da “gangue da Estação”. Na  nossa, entre outros valentões, tinha o Mário Wilson, o André, o Mazo, o Soneira, os filhos da dona Júlia e do “seo” Astor, os da dona Dita, o Zé Rubens, o Roberto da dona Dalva. Volta e meia tinha alguma agressão entre as turmas, que nunca fez um ferimento sequer, mas provocava xingatório dos mais agressivos, seu filho disso, seu filho daquilo, principalmente se a turma do Cubatão invadia nosso território em busca de mangas, goiabas, bananas, abacates, jabuticabas, mamões que escorriam pelas árvores do pomar do Raul Borges, nosso vizinho latifundiário. Jogos de futebol também acirravam os ânimos e geralmente terminavam com o dono da bola, de qualquer lado, saindo de campo, com a pelota sob o braço, nas vezes em que o placar lhe era desfavorável e seu time certamente perderia. Essas lembranças voltaram-me, ao me dar conta que domingo teremos o segundo turno das eleições e, ao terminar o dia, teremos novos Presidente do Brasil e governador de São Paulo. 
 
Sem mamãe para me arranjar vidrinho, não sei como me acalmar. Muitos dos companheiros de hoje estão lavando as mãos e abandonando o campo,  com medo do comprometimento com o resultado do jogo. Muitos não querem participar porque, talvez, não gostem das cores dos uniformes. Muitos estão influenciados por notícias e avaliações descabidas. O capitão do time de cá corre o risco de ser apedrejado; o do time de lá precisa de orientação constante do dono do time e não pode buscá-la porque o chefão está de castigo. E o jogo precisa acontecer.  Que tenhamos coragem para continuá-lo. 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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