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Num dia 3 de outubro, há muito tempo, certa mocinha foi intimada pela irmã e pelo namorado dela a acompanhá-los num casamento de amigos.

12/10/2018 | Tempo de leitura: 3 min

Num dia 3 de outubro, há muito tempo, certa mocinha foi intimada pela irmã e pelo namorado dela a acompanhá-los num casamento de amigos. A tal mocinha estava vivendo um processo doloroso: acabara de ser apontada socialmente como bandida, como ativista de esquema cujo propósito seria instalar, pela força, outro regime político no seu país. Tinha respondido inquérito, tinha sido processada, tinha sido levada à delegacia para depoimentos, sentia-se suja porque todo mundo apontava para ela e criticava, inventava coisas que ela não havia feito. Acusavam-na de atos jamais praticados. As pessoas podem ser muito cruéis, embora com desconhecimento total dos fatos. É o tal de julgamento moral. E pior, antecipado.
 
Não. Não queria ir. O pai virou fera: ela não havia matado ninguém, não havia roubado, não havia cometido outro crime senão o de ter ideologia diferente da maioria. Aliás, ela pensava e tinha idéias próprias, o que era, também, diferente da maioria. Quase à força, mas foi.  E com um bico deste tamanho.
 
Lá na festa, a surpresa. Naquele tempo já existia paquera. E ela estava sendo paquerada, olha só, por um moço bom, de família, quieto, caladão, completamente diferente dela. A irmã e o namorado, ali, só zombando. Ela foi se sentindo incomodada, achava que ele olhava com tanta insistência porque compartilhava das críticas sociais ácidas e injustas, das quais era vítima. Imaginava que ele estava querendo se “aproveitar” dela, como se dizia. Concluiu que se ele olhasse mais um pouco ela ia sair no berro, que se ele olhasse mais ela ia dar um esculacho nele, que se ele se atrevesse... “Boa noite”, ele disse se aproximando. Ela respondeu: “Boa noite” num tom de voz bem manso, diferente do que estava premeditando. “Amanhã, no cine São Luiz, vai passar Maciste na Terra dos Gigantes. Você quer ir comigo?”. “Quero”, ela respondeu maciamente. “Então, a gente se encontra lá, na sessão das seis”, ele determinou e foi embora. (Faz isso ainda hoje). E ela foi. E nunca mais se separaram.
 
Discordam em quase tudo. Quando ele é caseiro, ela quer balada; quando ele quer agito, ela quer recolhimento. Ela é fascinada pelo passado, ele acha que o futuro é bastante instigante. Já comeram muito mais de um saco de sal, juntos. Já se passaram quarenta e muitos anos daquele casamento dos amigos onde se encontraram. Já passou muita água debaixo da ponte. Já escaparam de matar um ao outro... Já aprenderam a se perdoar. Ele ensinou a ela o que é tolerância, compaixão, delicadeza, respeito. Ela ensinou-o a rir, a procurar a leveza, que há sempre um outro dia, que não se pode antecipar o dia de amanhã, que quase tudo é fortuito e passageiro. Estão se revelando, se reconhecendo e aprendendo um com o outro, até hoje.  E ela descobriu, no relacionamento, que se é prazeroso ser sonho na vida de quem quer que seja, é muito melhor ser realidade na vida de alguém. Por isso está com ele até hoje.
 
(Publicado originalmente em 6 de outubro de 2006)
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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