Bombardeio

Até pouco tempo não me pegava na inveja das benesses da juventude. Rugas; perda da turgidez da pele e do brilho dos olhos

31/08/2018 | Tempo de leitura: 3 min

Até pouco tempo não me pegava na inveja das benesses da juventude. Rugas; perda da turgidez da pele e do brilho dos olhos; o avolumado do corpo e o número revelado pela balança; certa dificuldade em sentar e levantar do chão; lepidez; agilidade no caminhar, principalmente. Nada me incomodava. Compensava tais perdas e em certos casos, ganhos, com a capacidade e consequente gabolice de lembrar detalhes de livros lidos; revelar muitas lembranças e situações vividas; trajetos feitos; nomes de lugares visitados, os próprios lugares, nomes de pessoas vinculados às experiências vividas com elas.  E desaforos recebidos. Nunca fui boa fisionomista, continuo não sendo, mas nunca fiquei no vácuo, boca aberta, tentando arrancar do fundo da memória a peça ou nome para completar qualquer frase. Até pouco tempo, disse. Surpresa, num repente me flagrei com o olhar perdido, branco na memória, sorriso besta nos lábios, quase a gritar por socorro, porque coisas do meu cotidiano como nome da rua onde moro, números de telefones, nome dos filhos ou dos netos insistem em desaparecer, quando mais preciso deles. E fico vulnerável. Ao chamar filho caçula, por exemplo, preciso dizer o nome da filha mais velha, depois do filho mais velho, depois do ex-caçula e só então acerto. O pior é que eles, que deviam me ajudar de primeira, caem na risada. Torcem organizadamente: “Vai mãe, mais um! Outro! Só falta um! Acertou!”... Não me lembro de cometer tal crueldade com minha mãe. Ou com minha avó.
 
Muita coisa mudou, porém. Se antes meu maior prazer era a vingança de ver algum desafeto coetâneo tomar invertida ou paulada da vida; ser ridicularizado; contestado; perder discussão, ser obrigado a se desculpar ou confessar derrocada, hoje é ver alguém jovem com a mesma cara de bobo que eu, à procura da palavra que insiste em não se fazer presente para completar frase, ou proposição. Não é sadismo, juro. O regozijo vem da constatação de que sofremos todos do mesmo mal dos tempos qual seja bombardeio de informações, sem nos darmos conta. 
 
Agora, nesse preciso momento, escuto o repórter pela televisão da sala narrar acontecimentos que se passam a milhares de quilômetros, mas que me afetam, por solidariedade ou algum outro tipo de interesse. O celular apita de minuto em minuto, avisando a chegada de mensagens do Whatsapp, Uol, Facebook, Instagran, Netflix que me interessam. Na mesinha ao lado, a manchete do jornal mudamente insiste em provocar meu olhar. Na tela do computador vejo meu texto e ao mesmo tempo o sininho do lado direito anunciando novidades do Youtube; a barra de tarefas desfila manchetes de acontecimentos internacionais fresquinhos e eu quero acompanhá-las todas. Ícones como IMDB, GloboPlay, Rentalcars relatam vantagens sensacionais. Os do MercadoLivre e do Livelo anunciam benéficos imperdíveis: quais? Fora que preciso lembrar das senhas para acessar cada aplicativo e do procedimento correto, para abri-los. Atualmente a fonte da minha maior alegria é alguém muito jovem parar o discurso e, boca aberta, confessar não lembrar o que dizia ou não conseguir completar a frase ... porque “deu branco”. 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br

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