M.

Conhecíamos desde que nasci. Convivemos não nos meus primeiros anos, mas desde minha infância. Tinha mais ou menos a mesma

20/07/2018 | Tempo de leitura: 3 min

Conhecíamos desde que nasci. Convivemos não nos meus primeiros anos, mas desde minha infância. Tinha mais ou menos a mesma idade de mamãe; dois filhos mais ou menos da mesma idade que dois dos da minha mãe, que eram quatro. Vidas totalmente diferentes. Ela era rica e minha mãe, não digo pobre, mas com bem menor disponibilidade material. Foram vizinhas, moravam inclusive no mesmo quarteirão, em casas que não eram uma ao lado da outra, mas localizadas de forma a permitir que nos víssemos sempre. O fundo de nossa casa coincidia com o fundo da casa da mãe de M. que era escritora, uma dama de cabelos e alma brancos. Volta e meia eu as pegava de prosa, conversando pelo muro dos fundos dos quintais, que dividia a casa de ambas, uma de lá, outra de cá. Minha vida e a de M. seguiram rumos diferentes. Acho que eu sumi da vida dela, ela da minha, embora algumas vezes nos encontrássemos, e nessas ocasiões nos tratássemos com alguma formalidade. Tinha acabado a intimidade e o motivo do desencontro, banal e ridículo, eu só saberia muito mais tarde. Minha mãe partiu bem antes dela. M. por sua vez se recolheu, poucas vezes era vista em algum evento. Só frequentava a Igreja. Pegava seu carro, ia às missas, voltava para casa. Estava sempre impecável, caminhava firme e sua pressa diminuía com a idade. De repente, se recolheu de vez. 
 
O destino conspira. Certa noite, já órfã de mãe e bastante carente de colo materno, vi que ela entrava no mesmo restaurante onde eu já estava. Entrada triunfal, embora com a discrição que sempre foi a tônica de sua família. Vinha com séquito. Ela, o filho, a nora, alguns dos netos acompanhados de suas jovens esposas. Eu me levantei, cumprimentei-a e aos familiares, dei-lhe um abraço. Ela me olhou, misto de surpresa e espanto e, reticente, disse-me para qualquer dia ir tomar café com ela. Que telefonasse para combinarmos. Telefonei e fui. Com a visita teve início amizade e parceria, que poucas pessoas acompanharam. Perguntávamos e contávamos de experiências nossas com e dentro das famílias de origem, nossas mães, pais, maridos, comparávamos filhos, netos, viagens, e descobrimos que tínhamos muito em comum. A rainha Elizabeth da Inglaterra era uma dessas paixões. Trazia-lhe revistas das minhas temporadas londrinas, contava-lhe as fofocas inglesas, falava-lhe de filmes, livros e séries de televisão sobre a família real, comentávamos sobre eles e tomávamos chá, trazido da Fortnum&Mason, loja onde a Rainha vai buscar os dela. Elegi-a minha rainha particular e a reverenciava. Admirava sua determinação. Por exemplo, aprendeu inglês em curso onde os colegas eram adolescentes. 
 
M. partiu muito mais cedo que eu esperava. A rainha Elizabeth, sua coetânea, ainda comparece a jantares de gala, anda de salto alto, sobe e desce escadas sem corrimão, argumentos que eu usava quando ela se dizia cansada. Vou sentir muita saudade. Mas fico com o orgulho da amizade que vivemos. Foi um privilégio. Se 007 teve sua M., eu tive a minha, que certamente era muito, mas muito mais bonita. 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br

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