Viagens - II

A memória seleciona o que reter, descartar, dentre as lembranças da vida, quaisquer que sejam.

08/06/2018 | Tempo de leitura: 2 min

A memória seleciona o que reter, descartar, dentre as lembranças da vida, quaisquer que sejam. Dizia das minhas primeiras viagens aéreas, de Franca a Uberlândia, num tempo distante. Dizia da dificuldade em organizar malas, troféu que jamais consegui ganhar porque, ainda hoje, embora experiente, o tempo do local de destino sempre me prega peças e, mesmo consultando serviços de meteorologia, acabo por errar no meu projeto fashionista. Tenho, no entanto, outras maravilhosas lembranças no meu baú de recordações.

Imagine-se uma linha irregular, abaulada, quase uma curva que tem início no ponto que marca a saída de casa, passa por aquele onde alcanço o destino e volta ao início, fechando-a. Não é circular mas, na verdade, meio abaulada. Longe da perfeição, essa invisível linha sofre variações no seu desenho e na sua espessura. Para mim, viagem é o conteúdo dessa imagem. Ao fazer breve balanço das muitas saídas que empreendi, percebo que tive experiências que vão da pura maravilha à desgraça total. Foram todas ótimas, mesmo as que não correram sobre carretéis, porque — isso também aprendi — o critério para eu julgar o sucesso de qualquer viagem é o quanto e o que aprendi em cada uma delas; o que mudou em mim, quando me comparo como eu era ao ir, e como voltei. De brinde, o que vi pelo caminho.

Minha estréia no camping foi na Serra da Canastra, às margens do São Francisco. Lua cheia, pé da serra, julho. O orvalho caía feito chuvinha fina, encasquetei de tomar banho no rio. Fui com meu irmão. No auge da minha miopia, achei que era dar pequeno passo e chegaria na pedra cujo contorno vislumbrava sob o luar, onde me apoiaria e banharia feito sereia. A pedra estava coberta de limo e bem abaixo do nível. Dei o passo, caí na água gelada, mergulhei, passei boa parte da noite tiritando ao lado da fogueira, na cachaça, sem conseguir me esquentar. Naquela viagem descobri a origem da expressão “pôr uma pedra em cima”. Quando alguém se dirigia à pedreira, sabíamos o que iria acontecer e a recomendação era geral: “Bota uma pedra em cima!”. Também lá descobri que a verdadeira índole, defeitos e qualidades, tudo que está escondido atrás das máscaras sociais, a verdadeira natureza das pessoas, a personalidade em estado puro das pessoas desponta, se revela e potencializa no acampamento. Se o sujeito é bom, fica ótimo. Ranzinza, vira ogro. Participativo, ajuda e realiza tarefas para todos, o tempo todo. Irascível, azedo? Avinagra de vez. Egoísta? Rouba picolé das crianças. Não importa quantos quilômetros você andou, percorreu ou voou para acampar, será a qualidade do que aprendeu, nos muitos ou poucos metros que percorreu o tesouro que você trará como saldo. Muitos viajantes de passaportes cheios de carimbos ainda não aprenderam isso. Já fiz viagem de caminhão, de navio, de barco, de carro, de ônibus, de avião. Falta uma de moto. Mas ainda não morri. Está na lista de desejos.

Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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