Luz Vermelha

Em distante tempo, desde eu menina até quase moça formada, a cidade tinha a “Zona”, chamada assim não por destaque no projeto de urbanização

16/03/2018 | Tempo de leitura: 2 min

Em distante tempo, desde eu menina até quase moça formada, a cidade tinha a “Zona”, chamada assim não por destaque no projeto de urbanização, mas porque no espaço de quatro ou cinco quarteirões distantes propositalmente do centro, ficavam confinadas prostitutas, rufiões, proxenetas e, claro, os frequentadores daqueles chamados lupanares do vício e do prazer. Perguntava a meus pais, eles respondiam com evasivas ou, quando eu ficava mais curiosa e aguçada nas perguntas, algumas vezes saíam no grito, ou diziam para eu ficar no meu canto e não perguntar sobre “aquilo”. O assunto era tabu. 
 
Um dia eu soube. Acho que foi papai quem contou o que acontecia naquelas casas que à noite substituíam as luzes claras por luzinha vermelha no alpendre, locais ao mesmo tempo vetados à entrada de moças de família e incentivados a serem frequentados pelos moços, muitas vezes da mesma família. Minha irmã e eu recebíamos instruções de nos manter distantes tanto daqueles espaços físicos, como das moças de rostos pintados de cores diferentes daquelas que as mães e mocinhas casadoiras usavam, garotas que usavam roupas coloridas e chamativas, mais justas, curtas e decotadas que as do nosso cotidiano. Ousei dizer que elas pareciam mais alegres, mais bonitas e mais felizes que as moças de boas famílias que deveriam me servir de modelo de comportamento. Levei bronca homérica.
 
As luzes vermelhas identificavam as casas de prostituição, onde supostamente os vícios grassavam; o prazer não era abortado, mas promovido; as bebidas garantiam lucros extras; tinha até trilha sonora — boleros, rumbas, sambas-canções — ritmos lascivos que promoviam divertimento e aproximação, e para onde iam os rapazes e homens em busca de distração, consolo nas situações emocionalmente difíceis, por farra mesmo ou, para usar o jargão da época, “descarregar”. Algumas dessas casas montavam mesas de sinuca ou de jogos de baralho. (E eles queriam que as moças casadoiras e de família abominassem e ignorassem esses lugares e preferissem passear na praça, tomar sorvete, comer pipoca e ouvir a banda municipal...) Costumes mudados, ainda hoje, do Oiapoque ao Chuí , a luz vermelha acesa à porta das casas continua indicando qual o tipo daquele estabelecimento.
 
Artigo de 7 de janeiro de 2014, publicado no Jornal da Paraíba, intitulado Prostíbulo de respeito, me despertou essas lembranças. Na data, os frequentadores do tradicional puteiro “Sala Drinks”, de João Pessoa, na Rua das Areias, ficaram surpresos e encabulados quando, ao chegar, notaram a ausência da tradicional identificação dada pela luz vermelha na porta. Questionada, a gerência do local divulgou em rede social que o estabelecimento continuaria funcionando com a mesma qualidade de sempre, mas que tirava, definitivamente, a luz vermelha de sua decoração. Os dirigentes explicaram que estavam sendo confundidos com a sede do PT, por conta da cor. Para “não macular nossa reputação, construída ao longo de muitos anos, não achamos outra solução.” E completaram: “aqui frequenta puta, veado, sapatão, mas ladrão, não. Nunca houve um roubo aqui!”
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br

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