Natais

Dos primeiros, nada. Começo a ter alguma lembrança de Natal lá pelos meus quatro ou cinco anos, prova de que coisas boas o indivíduo faz força para reter na mente.

22/12/2017 | Tempo de leitura: 2 min

Dos primeiros, nada. Começo a ter alguma lembrança de Natal lá pelos meus quatro ou cinco anos, prova de que coisas boas o indivíduo faz força para reter na mente. Ou no coração. Deles, lembro-me, principalmente, de quão espartanos eram. Papai, na época barbeiro de profissão, tentava recuperar tempo perdido e frequentava escola visando diploma que garantiria futuro mais promissor para a então pequena família de duas filhas, às quais, mais tarde, se somariam dois irmãos. Não sobrava muito para comprar brinquedos. Ganhávamos, ao invés, sapatos, vestidos bordados por mamãe, bolsas de escola, lancheiras, estojos de lápis de cor, itens de necessidade, que não seriam supérfluos. Vizinhos, talvez, tivessem natais diferentes, mais nababescos e, talvez, fossem tão alegres quanto os nossos. Mas faz parte de minhas lembranças a entourage natalina composta pela árvore enfeitada, sino na porta de entrada, mesa posta para o jantar com ramos de pinheiros no centro e o banho que tínhamos que tomar para esperar o Papai Noel. 
 
Como não havia rua pavimentada, o dia nos garantia brincar na terra farta, entrar no mato exuberante para colher marias-regateiras e até uma ou outra entrada, com vigilância, no Córrego dos Bagres, naquela época translúcido e despoluído como nossos corações. Primeiro o banho no tanque, lá fora, com mangueira e sabão de cinza, depois o do banheiro, com sabonete Lifebuoy.
 
Roupas limpas, meias brancas, estreia de vestidos para a ceia, esperávamos a toalete dos pais sentadinhos e descalços sobre a mesa, para não haver perigo de sujar a indumentária. Na ceia, frango assado, arroz, macarronada, salada, bolo, docinhos caseiros mais o toque de sofisticação, o kit individual composto de uma amêndoa, uma noz, uma castanha portuguesa e uma avelã, itens completamente fora do orçamento, mas que mamãe fazia questão que experimentássemos.
 
Cama, após a escovação dos dentes, de exigência, vigilância e supervisão do meu pai. Nossos natais eram alegres, descompromissados, tranquilos, inocentes, sem clima de competição. Frequentemente dormíamos com a porta da frente destrancada, com panelas e caldeirões espalhados pela casa que as goteiras eram muitas e chovia a cântaros na época de Natal. 
 
Essas lembranças felizes me voltaram hoje à memória quando começo a preparar reuniões de Natal para a família. E me vieram hoje, no momento em que voltaram fortes as lembranças dos trágicos acontecimentos que abalaram a cidade nos últimos dias envolvendo jovens e enlutando famílias conhecidas porque, subitamente, pareceu-me egoísta continuar a tarefa laica de cozinhar e planejar entorno para momento familiar, o que foi subtraído da rotina dessas famílias tão próximas. A vida continua; não fosse assim, não haveria sobrevivência dos familiares, que continuarão a viver, voltarão a planejar, sonhar, esperar, buscar. Neste Natal, porém, feridas abertas e ainda sangrando, que recebam muito carinho, solidariedade, amizade, afeição. Que saibam que a dor provocada pela tragédia bateu com muita força, em todos nós.
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br

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