Tigres

“Era uma vez o Tigre. Ferocíssimo. Depois de capturado e enjaulado, ficou sob cuidado e responsabilidade de Guarda, especialmente designado para alimentá-lo e vigiá-lo.

15/12/2017 | Tempo de leitura: 3 min

“Era uma vez o Tigre. Ferocíssimo. Depois de capturado e enjaulado, ficou sob cuidado e responsabilidade de Guarda, especialmente designado para alimentá-lo e vigiá-lo. Guarda queria que Tigre fosse seu amigo, ficava perto da jaula e falava com a fera usando voz amigável e mansa. Tigre, contudo, sempre o olhava com hostilidade e desconfiança e seguia cada movimento seu, pronto para atacar. Com medo de Tigre, Guarda pedia constantemente a Deus que o domasse. Certa noite Guarda se distanciou, não percebeu Menininha sentar-se muito perto da jaula. Próxima das grades de ferro e sem noção do perigo, ela ficou ao alcance das garras do Tigre. Ao ouvir o grito, o Guarda correu, mas ao chegar, encontrou o pequeno corpo estraçalhado e ensangüentado. Concluiu, então, que Deus não havia amansado o Tigre.
 
O medo cresceu, tomou conta dele. Trancou Tigre num buraco escuro onde ninguém pudesse chegar muito perto ou até mesmo vê-lo. A fera urrava dia e noite. O som terrível perturbava Guarda, que não conseguia mais dormir, remoía sua culpa. Nos pesadelos via sempre o corpo rasgado da menina. Sob o peso destas lembranças, chorava miseravelmente e orava, pedindo que Deus eliminasse Tigre. Deus, um dia, lhe respondeu, mas de maneira diferente do que esperava. Disse: ‘Deixe Tigre entrar em sua casa, nos quartos e jardins nos quais você vive e até mesmo na sua mais bonita sala.’ Guarda já não tinha medo de morrer — aliás preferia morrer, que viver escutando o urrar de Tigre. Foi quando decidiu obedecer Deus. Abriu a porta de casa e orou: ‘Seja feita a Tua vontade.’ Tigre saiu lentamente do confinamento, viu Guarda e parou. Olharam-se nos olhos por muito tempo. Ao notar que Guarda não tinha mais medo dele e, diferente de antes, respirava calma e pausadamente em sua presença, deitou-se a seus pés. Ao anoitecer, porém, Ti
gre voltou a urrar e Guarda voltou a ter medo. Novamente foi aconselhado a soltar Tigre, deixá-lo entrar em sua casa e enfrentá-lo, sempre olhando dentro dos olhos da Fera. Isso aconteceu todos os dias, durante muito tempo. Aprenderam a conviver, Guarda jamais teve a fera completa ou definitivamente sob seu poder e todos os dias fazia o mesmo teste de coragem, ao subjugá-lo. Depois de alguns anos, Guarda ousou tocar o Tigre e até se atreveu a colocar a mão na boca do animal sem, jamais, tirar os olhos de sua figura. Quando se olhavam, desafiadoramente, ficavam ambos felizes por reconhecer serem necessários um ao outro e por terem aprendido a viver juntos, ao reconhecer a mútua dependência.”
 
Texto que conheci nos anos 80, cresceu após ver Dragões, espetáculo da Companhia Vocal Enrico Nery, da qual e de quem sou fã de carteirinha. Tigres e Dragões são ambos alegorias para angústias, medos, frustrações, desesperos e limitações humanos. Renitente, às vezes tento sufocar Tigres e Dragões ora confinando ora os trancando nos meus mais obscuros porões. Eles só se avultam. Domo-os quando, ao tomar coragem, olho em seus olhos ou, no extremo das minhas forças, aprendo a conviver com eles.
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br

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