Limites

Minha irmã e eu fazemos parte da geração que cresceu ouvindo ladainhas, quase mantras, cantadas pelos pais, sobretudo pelas mães

07/04/2017 | Tempo de leitura: 2 min

Minha irmã e eu fazemos parte da geração que cresceu ouvindo ladainhas, quase mantras,  cantadas pelos pais, sobretudo pelas mães. Vocês são mulheres, cuidado. Não acreditem em tudo que ouvirem; salvaguardem-se; defendam-se; cuidado com liberdades e brincadeiras exageradas com amigos. Por ocasião da menarca, sob aquele manto de segredos e mistérios que envolvia a manifestação natural do nosso corpo em crescimento, acrescentou-se adendo às antigas orientações. Ouvimos que nosso corpo estava preparado pela natureza para conceber e merecia cuidados, proteção; que devíamos tratá-lo como a um templo sagrado. A esmagadora maioria das mulheres da minha geração recebeu e atendeu às mesmas orientações familiares. Aconteceram abusos, mas no geral protegemo-nos dos ataques exteriores. Quando atingíamos maturidade ou idade suficiente para sair de casa sozinhas lá vinham as mães alertando: não aceite balas, doces, sorvetes; não aceite nada, ouviu? de ninguém que você não conheça. E a gente obedecia. 
 
Não ficamos, minha irmã e eu, incólumes de trauma provocado por assédio — que quem sofreu sabe que dói — momentos ruins dos quais só viemos a falar recentemente. História que muitas outras meninas daquela geração com algumas variações de enredo, viveram ou poderiam ter vivido. 
 
Meus pais mantinham relações de amizade com família tradicional da cidade de casal e três filhos mais velhos que nós, o triplo da nossa idade. Eram pessoas que meus pais acreditavam serem idôneas, acima de qualquer suspeita, gente nas quais confiavam plena e cegamente. Estávamos crescendo; adolescendo; loirinhas, carne dura; alegres, conversadeiras, uma mais, outra muito menos tímida. Uma tarde, em que o pai e o filho mais velho daquela família sabiam estarmos sozinhas, passaram em casa, entraram, sem convite. Eram de casa, afinal. Após alguns cumprimentos, perguntas de praxe, ligeira desconfiança pairou no ar, somatória de olhares trocados entre eles, mais respirações aceleradas, mais a forma insidiosa com que se aproximaram, um de mim, outro da minha irmã, enquanto nos diziam estar preocupados com nossa pele, que não queriam que espinhas e cravos maculassem nosso rosto. Insistiram em que abaixássemos nossas calcinhas para verem se tínhamos nas nádegas sinais de acne. Rodei a baiana. Gritei, dei-lhes chutes e empurrões, mandei-os embora, enquanto eles, pegos de surpresa, diziam que não, que eu estava enganada, que eles não nos fariam mal, onde já se viu. Temendo escândalo, foram-se. Passado o susto, assustadíssimas, combinamos que não diríamos nada aos pais. Achamos que não acreditariam, considerariam fantasias nossas, pois pai e filho pertenciam a santíssima espécie de amigos familiares. 
 
Da experiência, algumas lições. Mulher deve aprender a se defender desde cedo. Em caso de assédio, revidar na hora, com estardalhaço. É preciso pôr limites em quaisquer relações humanas: sem eles, o ser humano enlouquece.
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
Jornalista, escritora, professora
luciahelena@comerciodafranca.com.br

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