Lembranças

A fim de manter poucos hábitos saudáveis remanescentes de vida cheia de contradições e oscilações emocionais que levam a considerá-la

11/11/2016 | Tempo de leitura: 3 min

A fim de manter poucos hábitos saudáveis remanescentes de vida cheia de contradições e oscilações emocionais que levam a considerá-la rica e muito pouco monótona, sazonalmente passo a limpo coisas e objetos armazenados ora em caixas, compartimentados, ora em prateleiras que acabam, ambas, por ação do tempo, a ficar cobertas de poeira.  Vão-se armazenando sobre elas tanto a poeira do tempo, quanto a poeira de emoções e sentimentos. A do tempo, concreta e fácil de ser eliminada; a emocional, que encobre lembranças que envolvem pessoas, situações, momentos. Vida. As primeiras, tangíveis, qualquer espanador ou pedaço de pano úmido as elimina de maneira fácil, rápida e eficiente. 
 
As outras, maiores, senão em número, mas em significado, evocam situações vividas e pessoas com as quais as compartilhei, exigem escolha, critério de escrutínio, desprendimento e desapego. Sou rainha do armazenamento. Retenho absurdos como pedaços de papel sem palavras apenas com desenho infantil e dedicatória em garatujas cujo sentido só eu identifico; cardápio do restaurante onde comi mal mas as companhias eram ótimas, tornando a noite memorável; flores secas; fotos descoradas de gente que nem convive mais comigo; lencinhos de cambraia com resto de perfume. Cartões postais. Sapatos surrados; outros, novinhos. Roupas que usei uma vez, outras que devia jogar fora para sanear o ambiente. Enxoval infantil feito em cambraia de linho, bordado com esmero, mantas de bebê. E livros e filmes. 
 
Guardo tanto filmes domésticos feitos em antigas máquinas como a filmadora VHS, fita 8 milímetros; guardo, inclusive a própria máquina, que nem funciona mais. Possuo filmes comerciais atemporais, a maioria deles versões de espetáculos de óperas famosas, cujas trágicas personagens foram imortalizadas por Pavarotti e Domingo. Mais recentemente, quando os DVDs se tornaram populares, comecei a armazenar versões de filmes memoráveis, alguns deles, remakes: Gilda, com Rita Hayworth; Top Hat, com Gene Kelly e Fred Astaire; duas versões de O Fio da Navalha, uma com Tyrone Power, outra com Bill Murray. Meus livros merecem destaques. Tenho os tataravós do Google, quais sejam a enciclopédia ‘Barsa’ e o ‘Tesouro da Juventude’. Tenho parte da coleção de Seleções, do número 1, datada de 1942 até a edição realizada em dezembro de 1975. Tenho clássicos da literatura internacional, nacional e todos os escritos por Cony, por exemplo. A metade do pó da cidade está em minha casa, sobre minhas lembranças. 
 
Procedimento demorado e delicado limpar meu tesouro, até porque limpá-lo não é apenas passar pano umedecido com água ou algum abrasivo. O processo é demorado, verdadeiro ritual. Pegar o objeto; lembrar o motivo pelo qual foi guardado; deixar aflorar a emoção provocada por esta específica lembrança; reconsiderar o nível sentimental da evocação e só então decidir se deve ser conservada. Se sim, recolocá-lo com cuidado; se não, descartá-lo. Ao fazê-lo, abdicar daquelas memórias e apagá-las do disco rígido interno. Depois é só esvaziar a lixeira. Aprendi a jamais verificá-la nesta etapa do processo, para não recair ou me arrepender. 
 
Materialmente estou ficando craque na realização de limpezas. Emocionalmente, nem tanto. Politicamente, caminho os primeiros passos. No meio desses guardados achei o título de eleitor, junto dos quais conservo papeizinhos que confirmam meu cumprimento do dever cívico. Aprendi a anotar nos versos deles os nomes daqueles a quem dei meu voto, em cada eleição. Os canhotinhos informam que, ao longo da minha vida cívica, já fui de esquerda e direita, já perdi e ganhei eleições, descobri que já votei na dupla Collor e Lula, em diferentes eleições, mas lhes dei meu voto. Na última empreitada de limpeza joguei fora todos esses comprovantes. Desse meu passado político, que me envergonha, não quero deixar vestígios. 
 
 
Lúcia Helena Maníglia Brigagão
jornalista, escritora, professora - luciahelena@comerciodafranca.com.br
 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.